Comunicado Importante - 3 contos do blog serão publicados

É com muito orgulho que venho anunciar, que eu Debby Lennon e Sandra Franzoso iremos participar da antologia Jogos Criminais. A Antologia será lançada no dia 15/01/2011, Na Biblioteca Viriato Correa, situada a Rua Sena Madureira, 298 - Vila Mariana. Meus contos Anjo Perdido e Joana e Maria, já foram postados aqui no blog e agora está aperfeitoado e com mudanças no final,o mesmo acontece com o conto O Noivado da Sandra. Maiores informações em breve.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Nem todos serão cordeiros - Capítulo 1



De minha primeira infância, lembro-me muito pouco. Nos dias de calor, do fétido cheiro que vinha dos esgotos que corriam a céu aberto. Da coceira crônica em meu corpo, uma mescla da sujeira e das picadas dos insetos abundantes. Do chão rústico de cimento do barraco em que vivíamos e das ruas enlameadas e ingrimes pelas vielas da favela. De Dona Altamira, com quem ficávamos quando minha mãe ia ao trabalho ou quando passava a noite fora. E dos beliscões que a velha nos dava, quando chorávamos ou a desobedecíamos.



Das imagens de minha família, alguma coisa ficou. Mas tênues, suplantadas pelos conceitos e impressões adquiridas quando eu já tinha uma consciência mais apurada. Minha mãe, Bete, uma mulher até que bela, dentro das limitações impostas pela pobreza. Não haviam os cuidados necessários. Quando muito, um batom barato, alguma maquiagem mal feita, para as poucas ocasiões especiais que teve em sua vida.

Negra, cabelo ruim, sempre desgrenhados, dentição bastante prejudicada por caries e até ausências de dentes, já tinhas os peitos caídos pelas sucessivas gestações e pelo hábito de não suportá-los com um sutiã. Mas ainda chamava a atenção em nosso meio, quando saia à rua, com uma saia curta, colada às ancas, deixando a mostra suas coxas grossas e a bunda avantajada. Os homens do local, certamente imaginavam que havia muita safadeza a se fazer com uma mulher destas. E ela, não se fazia de rogada. Namorara muitos, engravidara mais quatro vezes durante o tempo em que convivemos. Tinha 23 anos e cinco filhos, quando eu fugi de casa.

Eu, o filho mais velho, parido sem o desejo de parir-me, aos 15 anos. Como aos meus outros três irmãos e uma irmã, esta a caçula, com seis meses de idade apenas. Nunca conheci meu pai, como meus outros irmãos também não viriam a saber quem eram os seus próprios. Nunca perguntei, ela nunca falou. Não falava de seus “homens”. Ficavam para trás, nas noites de forró e alguma cachaça. Foram incidentais em sua vida. Dependera deles para um momento, uma bebida, uma noite. Nóias da favela, de mesma idade e futuro presumido. Ou velhos aproveitadores de sua estupidez adolescente de outrora. Agora, transformada em desesperança e indiferença. Era sexo o que queriam? Então, abria as pernas, desfrutava de umas palavras amorosas, que nunca ouvia senão nua e submetida à satisfazê-los. Saciava-lhes as taras, suportava seus hábitos embriagados. Uma ervinha para relaxar, um lingerie ou bijuteria vagabunda, adquirida por R$ 5,00 dos marreteiros que as vendiam de bar em bar. Essa era sua vida. Não era perfeita, mas caminhava resoluta, entre os serviços de diarista doméstica e as tarefas de casa. Por vezes, nos acarinhava, fazia cócegas. Por outras, ralhava conosco. E chinelava nossas bundas, por alguma arte cometida.

Mas o que a enfurecia de fato, era quando brigávamos entre nós, irmãos. Lembro-me de uma vez, em especial. Eu tinha sete, meu irmão seis anos. E por disputarmos a tapas um carrinho de apenas três rodas, pego por ela em uma cesta de lixo, a caminho de casa. Ela caiu sobre nós dois como um raio da fúria divina. E cobriu-nos de chineladas. Desta feita, sem a menor preocupação de que o chinelo nos alcançasse as faces ou qualquer outra região do corpo. E quando se deu conta, ouviu enfim nossos apelos para que parasse, agarrou-nos pelas orelhas e assim, puxando-as com força, nos levou para a porta do barraco. Escancarou-a com um chute e apontando para as vielas estreitas e escuras gritou, com a voz transtornada:

- Vocês vão enfrentar isso sozinhos? Vocês vão enfrentar esse mundo aí de fora, sozinhos? Um sem o outro, sem a família, sem seus irmãos, não sobreviverão nem até a próxima esquina. Serão devorados, entendem? Estão me entendendo?

Tanto eu como meu irmão, mais a olhávamos, temerosos, do que para o cenário apontado por ela. Não tínhamos compreensão sobre o que falava. Mas jamais esqueceríamos suas palavras. Porque sentíamos que seriam importantes para a nossa sobrevivência. Só assim para entende-la e perdoar toda a sua fúria. Mas o fato, é que não me recordo de qualquer outra briga séria entre eu e meus irmãos. Um bate boca, um empurrão. Mas nada além disso. Bem ou mal, eu havia aprendido o que era uma família. E que seus membros se amparam mutuamente. Se protegem do mundo. Brigam, até matam se for preciso, para defenderem a integridade de um membro ameaçado ou ofendido. E minha mãe sabia disso. Havia aprendido da pior maneira: ninguém para defendê-la de seu destino e humilhações. Expulsa de casa ainda menina, por engravidar. Por me carregar em seu ventre. E ninguém para ampará-la. Nem um grito em seu favor, sequer.

Mas as coisas mudam. E nossa família também mudou. Uns dois meses após, Bete conheceu Agenor e o trouxe para morar em nosso barraco. Um sujeito de boa pinta, branco, pele morena de sol, cabelos loiros, olhos verdes, diversas tatuagens pelo corpo. Musculatura forjada em academias, sabe-se lá pagas com que dinheiro. Agenor não trabalhava. Mas tinha sempre seu maço de cigarros no bolso. Agenor. Nunca acordava antes das onze da manhã. Mas sua cerveja estava sempre geladinha, confortavelmente instalada em nossa geladeira quase vazia.

Conversa fácil, Agenor a agradava. Dizia-lhe juras de amor, a assediava até na nossa frente, com carinhos ousados e cochichos em seus ouvidos. E Bete sorria, gargalhava. Se trancavam no banheiro, único cômodo separado dos demais. Eu e meus irmãos, no cômodo único, ouvindo os sons estranhos que de lá vinham. Mas ele fazia bem para ela.

Seu permanente sorriso. Os carinhos que passou a dispensar aos filhos, o cuidado que passou a ter com o vestir-se, perfumar-se. Estava florescendo como mulher. Realizando-se no sonho do amor encontrado e compartilhado. Durante três meses, pude conhecer uma outra mãe: a Bete, que sonhava acordada. E sonhou e sonhou. Até que...

As palavras de Agenor já não eram tão doces. Era normal vê-lo pedir dinheiro para minha mãe – Não nasci para ficar preso dentro de um barraco. Vou jogar bilhar com os amigos – As lágrimas de minha mãe também se tornaram corriqueiras. Ela não falava nada. Nem para nós. Nem para ele. Tentara, mas ela a interrompera abruptamente, indagando se ela pretendia passar a “cuidar” de sua vida. Porque, se fosse assim, ele iria embora naquela noite mesmo. E ela calou, enquanto pode.

Fingia dormir, secando as lágrimas e engolindo o soluço, quando ele entrava cambaleante, de madrugada. Deitava-se ao lado dela. As vezes, desmaiava de bêbado. Noutras, matava sua fome de sexo, usufruindo o seu corpo. Nada mais.

E os sonhos de Bete foram-se, como vieram. Nos seus olhos, o retorno da indiferença e desesperança. Mas havia um componente novo. Algo que a machucava. Que arrancava lágrimas que antes não existiam. Havia a sensação de culpa. Por ter perdido a felicidade alcançada. De ter chegado tão perto, mas tão perto e...

Ela o amava? Não sei. Creio que amava mais a sensação de saber poder amar. E de ter sido amada. Ou crer nisso. E ver isso desfeito, arrancado de seus dias miseráveis, a alquebrou.

Ela ainda tentou. Criou coragem, reuniu o que ainda havia de dignidade em si. Recusou-se a abrir sua carteira, para que ele fosse a uma segunda rodada de bilhar com os amigos. Era frequente esse seu retorno lá pelas oito da noite, horário em que Bete já estaria em casa, após sua jornada diária e com algum dinheiro na bolsa. Agenor pedia, ela dava-lhe vinte, as vezes trinta reais, que ela sabia que seriam gastos em bebida e com outras. Como um dia, foram gastos com ela.

- Não – e foi a única palavra que a ouvi dizer. E então um primeiro tapa no rosto. Ela caiu. Ele ainda deu um chute em seu estômago. Eu pulei em cima dele. Mas o que podia um moleque de oito anos contra um homem formado, forte, no auge de seu vigor físico? Senti o impacto das costas de sua mão contra a minha face. Devo ter voado meio metro, de encontro a parede do barraco. Ele abaixou-se tranquilamente. Enfiou suas mãos nos bolsos da calça de minha mãe, que se contorcia ainda. Tirou o dinheiro. Contou os setenta reais da diária que ela recebera. Puxou uma das notas de dez e jogou sobre o rosto de Bete – Pro leite das crianças – Deu uma gargalhada e saiu pela porta.

Corri até minha mãe e a abracei. Meus outros irmãos, até agora encolhidos ao pé do sofá, também vieram. Demos um abraço, todos nós – Eu vou matar esse cara, mãe. Eu juro que vou! - E ela apenas abraçou-se em meu braço de criança. Sua cabeça sobre minhas pernas, uma mistura de sangue e lágrimas as umedecendo. Foi o momento mais feliz da minha vida. Sentir aquele calor de todos nós abraçados. Nos cuidando mutuamente. Como deve ser, em uma família.

Porém, a vida continuaria. E Agenor voltaria. Ela sabia, bem como nós. Então, Bete serviu-nos o jantar, uma sopa bastante pedaçuda com muitos legumes, como gostava de fazer nas noites frias. Antes das dez, estávamos em nossas camas. Silenciosos e atentos. O sono não vinha. Apenas a angústia nos apertando o peito.

Num horário incerto, Agenor entrou. Cambaleante como sempre, despiu-se totalmente e se deitou ao lado de Bete. Cochichava em seus ouvidos. Pedia desculpas, dizia ter perdido o controle, que ela o irritara, ele só queria uns trocos para beber com os amigos. Que não aconteceria de novo. Ele prometia. E até devolveu-lhe o dinheiro que não gastara: pouco mais de seis reais. Fizeram amor ali, na nossa frente. Como no início, quando ainda havia encanto nos olhos de minha mãe. E nessa hora, com o rosto ainda a latejar, odiei-a como nunca odiei alguém em minha vida.

A nova lua de mel durou alguns dias. Agenor preso em casa, feito besta arrancada de seu habitat, ralhava conosco na ausência de Bete. Enchendo-a de palavras amorosas, quando chegava do trabalho. Mas numa noite sem nenhum porquê especial... chutes mais fortes, socos em profusão. Um dia, noutro. Então, começamos, eu e meus irmãos a apanhar também, durante a ausência de nossa mãe. Por nada, por um olhar de ódio.

Não havia mais família. Eu não a amparava mais. Ela não se importava em ver nossos hematomas. E a vida apenas seguia. Um menino de oito anos sonhando com o dia que tivesse coragem para enfrentar aquela viela. Sem família. Só. E convicto de que sobreviveria, a qualquer custo.

Era um domingo de Dezembro, próximo ao natal. Acordei cedo. Não haviam mais aulas, mas mesmo assim, quis pular da cama as seis da manhã. Sem fazer barulho, aproveitando-me do sono pesado de Agenor e de minha mãe, após uma noite de bebedeira de ambos, mas ela só, em casa, e ele num bar. Fucei os bolsos da bermuda de Bete e tirei alguns trocados: R$ 28,40. - Minha herança – pensei ao enfiar o dinheiro no bolso e sair pela porta do barraco. A mochila escolar com umas poucas roupas e mais nada.

Na cabeça, a vontade de vencer. No coração, o desejo de um dia voltar. E me vingar de Agenor.


Gostou? Então leia também o Capítulo 2 - Clique aqui

13 comentários:

Unknown disse...

Brrrrrr!!! frio

E o concurso? como ficou?

Anônimo disse...

Aguardando o próximo capítulo...

Muito bom José! Vou fazer uma aposta comigo: descobrir quem são os "piores" da fita! Porque "feios porcos e maus", são todos. Lembras-te do filme, ou não passou por aí? :)

Grande abraço
Luísa

Sandra Franzoso disse...

José, que ódio!!! Quero saber o final rsrs. Vou ter que comer muito chocolate pra aguentar essa ansiedade pelo fim do conto rsrsrs...
Puxa, quantos não passam por esse tipo de situação né? Não quero atirar a primeira pedra, mas eu como mãe, não entendo as mães que permitem que os filhos passem por situação parecida a essa.
Beijos!

LISON disse...

SAUDAÇÕES!
AMIGO JOSÉ SIDNEY,
Um Conto absolutamente magistral!
É tanta riqueza de acontecimentos que nos prende do começo ao fim!
Parabéns pelo excelente Post!
Abraços!LISON.

Professor moreijo disse...

isto e apenas a primeira parte imagine o que à de vir por ai ...valeu...amigo ate breve...fuiiiiiiii

Anônimo disse...

Paz Amigo José... pô meu ja tava mesmo com saudades dos seus textos...
que bom que estas de volta...
caro amigo parabéns por mais esse...
e te peço desculpas pela ausencia... sem net .. não da para viver... rsrsrs..
há ... por falar nisso você conseguiu o hd .... espero que sim...
sempre é muito bom ler os textod de todos aqui ...paz seja com todos ...!!!

Suzana Meirelles disse...

Nossa que triste,que dor,que doçura,que vontade de ler o resto!!!!

Mikasmi disse...

Finalmente consegui...
Que conto fantástico
Como a Luisa falou, faz lembrar um pouco os feios porcos e maus, mas esse era cómico este é bem triste.

Aguardo ansiosa, o desfecho.

Abraços

Terezinha Bolico disse...

Vou me repetir, não tem jeito...adorei(gosto de contos fortes, intensos)!!...eu devoro cada letrinha e vai ser dureza esperar pela parte final.
abração!
.
terezab

totinhasocorro disse...

muito bom o conto..moro em uma cidade pequena, carente de cultura, e muitas mulheres com baixa estima..infelismente,vivem situações parecidas...porém nem todas tem o mesmo final, são vidas que tb buscam alternativas..ou se iludem com carinho embriagador, enfim estou anciosa pra ver o final rsr..
abraços

Joselito disse...

Bem, vamos aguarda a segunda parte, não quero ser chato, mas acho que não vai ter um final feliz. Quanta perspicacia ...

BLOGZOOM disse...

Uau, Jose! Fiquei presa até o final querendo saber mais... melhor do que comprar livro de suspense!

Beijos...

Antonio Regly disse...

Sidney,
Agora que acabei de ler o capítulo entendi o por quê dos clamores pelo "final".
Cara, não sei se chamá-lo de Hitchcock brasileiro é elogio ou ofensa... rs. Acho que você é melhor, então recaba como elogio.

Mas uma pergunta que não quer calar: como é que um sujeito que é especialista em festival de hamburger e cachorro-quente para crianças, arrebenta em contos de suspense?

Comentando o capítulo, tenho a dizer que esta é uma realidade em muitas vidas. Leio, mas confesso que não gosto muito de ler histórias assim. O "mundo cão" é algo que faz doer por dentro. Mesmo doendo não podemos ignorá-lo, é a realidade.

Você é uma pessoa que gostaria de conhecer pessoalmente, num destes encontros - porque a vida é corrida e, às vezes, só dá mesmo para um encontro programado e corrido.

O diHitt tem sido assim: a gente conhece um monte de gente legal e só dá para falar por aqui, na telinha do PC, ou melhor, nos formulários de contato. Seria muito legal se, em vez de telinha e formulário de comentários, pudéssemos, cada um, montar sua barraquinha ou cabana, e visitar cada um e trocar uma idéia.
Fizemos isto com a Sissy. Foi corrido mas foi legal.

Agora... vamos mesmo ter que esperar até a próxima sexta para conhecermos o final, ou ainda tem mais uns três capítulos antes do final?

Abraço do amigo,

Antonio

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