Comunicado Importante - 3 contos do blog serão publicados

É com muito orgulho que venho anunciar, que eu Debby Lennon e Sandra Franzoso iremos participar da antologia Jogos Criminais. A Antologia será lançada no dia 15/01/2011, Na Biblioteca Viriato Correa, situada a Rua Sena Madureira, 298 - Vila Mariana. Meus contos Anjo Perdido e Joana e Maria, já foram postados aqui no blog e agora está aperfeitoado e com mudanças no final,o mesmo acontece com o conto O Noivado da Sandra. Maiores informações em breve.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nem todos serão cordeiros - Capítulo 2

A noite nas grandes praças do centro de São Paulo ainda o impressionava, apesar dos quase seis anos vivenciando-a. A escuridão derramando-se sobre as sutilezas da arquitetura da majestosa Catedral, os espelhos d'água refletindo as luzes excessivamente artificiais da iluminação pública, os bancos da praça ocupados por um ou outro mendigo mais corajoso, num sono descuidado e convidativo ao espancamento e morte. Grupos de crianças perdidas, dormindo amontoadas em cantos mais escuros e fronteiriços à praça, alguns ainda acordados, consumindo mais uma pedra.

Em nada a cena lembrava a fúria vencedora do dia claro e corrido, desenhado por vitoriosos ou outros tantos que ainda buscavam seu lugar ao sol, quando o espaço era disputado em milímetros por pedestres e ambulantes. Após o anoitecer, a praça pertencia aos excluídos. Aqueles à quem já não importava a conquista, o sucesso – Apenas mais um dia – era tudo o que almejavam estes, pensou Glauco, enquanto deslizava quase sorrateiro pelo calçadão. Venceu a distância até os degraus da Igreja e sentou-se por ali, para poder contemplar melhor seus possíveis inimigos. E também aos “alvos”. 

Meteu a mão no bolso de seu paletó encardido, bastante gasto pelos anos de uso – O preço de minha invisibilidade – e apanhou a caixa de fósforos e o maço de Eight. Apenas dois no maço - E nenhum camelô com coragem suficiente para enfrentar o abandono desta terra - A noite seria longa, sem poder fumar. Acendeu um, ainda hesitante pela imprudência. O pulso de uma chama, o estalo do fósforo. Qualquer coisa neste ambiente poderia atrair a atenção de outros. Mas a sua necessidade de repor a nicotina era maior que a razão. Encheu os pulmões, numa extenuante tragada. Ao mesmo tempo, aguçou os ouvidos, como um pastor alemão, para compensar a desnecessária exposição de seu personagem. Focou a atenção num grupo de adolescentes, há uns cinquenta metros de onde estava, quase na esquina da Senador Feijó. O mais velho, talvez tivesse uns dezessete anos. Os outros, bem menores. Talvez na faixa de treze ou quatorze anos, sentados sob a proteção do maior - Muito imprudentes também – analisou ao ver as fagulhas das pedras de crack saindo dos cachimbos. Contou os alvos – Quatro em transe. Um em pé, possivelmente entorpecido também – enfiou a mão dentro de seu saco de quinquilharias. A barra de ferro estava ali. Uns doze quilos de metal maciço, suficientemente rijo e pesado para esmigalhar alguns crânios. Mas não iria se apressar em fazê-lo. Seu cigarro estava quase por inteiro, a espera de ser fumado com paixão. E aqueles moleques não iriam a lugar algum após se entupirem de crack. Deu mais uma voraz tragada e soltou a fumaça em fragmentos miúdos, quase como numa crise de soluços.

Por quantas mortes fora responsável durante os últimos seis anos? Drogados, skin-heads, punks, alguns policiais e até inocentes que estavam no lugar errado? Cem, duzentas, mil, mais? Não guardava esse número. Apenas uma execução fora-lhe marcante, doída. Todas as demais – Apenas trabalho...

Deixou-se levar por algumas lembranças persistentes. O telefonema para o se celular. Sua chegada em casa, no meio da tarde, os corpos de sua esposa e de sua filha ainda pré-adolescente sobre o tapete da sala de visitas. Muito sangue e dor tatuada em suas faces mortas. Um drogado, a necessidade da droga, do dinheiro para adquiri-la. Um taco de beisebol, duas mortes, outras tantas vidas destruídas. Um maldito drogado de dezesseis anos – Meu próprio filho – E a sensação de impotência, de ter errado muito. Educação, criação, repreensões na medida exata e na hora precisa... não conseguia equacionar a questão. Não conseguia respostas. Apenas a depressão. Oito longos meses afastado de sua Metalúrgica, trancado em casa, chorando em sessões com seu psiquiatra, se entupindo de antidepressivos – E pra que? - Para aplacar o ódio que sentia por si próprio e pelo seu filho? - Por aquele canalha que me tirou tudo, tudo mesmo?

Encontraria suas respostas nas ruas. Deixou os remédios de lado, a análise, os amigos. E foi atrás de seu filho. Sabia que andava pelas ruas. Atras de mais drogas e longe da polícia. Tinha a certeza de que iria encontrá-lo.

De fato, nem foi uma longa busca. Duas semanas vivendo como maltrapilho, morador de rua, e lá estava Diogo. Magro, quase um cadáver. Encostado numa das árvores da República com mais outros dois amigos. Nem reconheceu Glauco, com sua imensa barba postiça, roupas imundas e rasgadas, pele coberta por uma crosta de sujeira e fedor. Ninguém o reconheceria mesmo. Ninguém se aproximava o bastante para isso. Nem com um olhar. Já esbarrara em diretores de sua empresa, que tinha sede administrativa ali na Barão de Itapetininga. Como sua própria secretária também. Nenhum deles lançou sequer um olhar para ele. Distanciaram-se mais meio metro ao perceberem aquela presença incomoda, recostado sobre uma parede qualquer – Meu manto de invisibilidade. Meus super poderes – sorriu, concluindo.

Só teria que esperar a hora certa, para abordar Diogo. Algumas horas mais e teria sua vida de volta. A vida que Diogo lhe roubara. Olhou para um dos relógios da praça – Nove da noite. Cedo ainda – teria que ser a sombra do moleque até a madrugada, para que não lhe escapasse.

O grito abafado de uma criança trouxe-o à Sé novamente. Atentou para o som, procurando identificar sua origem – As escadarias do metrô – Apagou seu cigarro e caminhou apressado, porém silencioso. Abordou a escadaria lateralmente. Uma pequena olhadela e viu três moleques, não mais que quinze anos, subjugando um outro de oito ou nove anos, para que fosse estuprado pelo maior do grupo. Glauco empunhou sua barra de ferro e, num pulo calculado, voou sobre eles. Alguns estalos de ossos partindo, gritos, sangue respingando para todos os lados. Questão de segundos. E apenas o menino de oito anos olhava-o nos olhos, apavorado.

- Vem. Temos que sair rápido daqui, antes que alguém nos veja.

E assim, o Seu Glauco entrou em minha história - Glauco - Como um misterioso herói underground de HQs. Eu senti repulsa por ele, no primeiro instante. Por seu cheiro, por sua horrenda aparência. Mas era-lhe grato. Na minha primeira noite na rua, ele apareceu e me resgatou de um massacre. Lembrei de minha mãe, de seu alerta sobre o mundo. E então, pensei em Glauco como um pai. O que nunca tive. E o que entrava agora na minha vida, para restituir-me uma família. Sentia-me feliz, apesar do corpo e alma doloridos pela humilhação do estupro.

Sumimos, entre ruas escuras e becos. Passos apressados, porém não numa corrida, caminhamos rumo à Praça da República. Eu não imaginava minimamente as possibilidades que estavam se abrindo para mim. E nem ao mundo que eu viria a pertencer. O estranho mundo de Glauco.

continua na próxima sexta

não leu o Capitulo 1 -  Clique aqui e leia

sábado, 12 de setembro de 2009

Demasiada Loucura é o Mais Divino Juízo

Pessoal,


Depois de um tempo afastado, devido ao concurso de contos, retomo as postagens de sábado, abordando, desta vez, uma outra maneira de se falar sobre o que se passa dentro de nossa cacholinha. É o lado oculto da mente falando através de poemas, afinal, nada mais oculto na mente humana do que os versos que formam esta manifestação literária belíssima e tão pouco difundida, infelizmente.


Abaixo seguem três poemas que tem como temática a mente humana, e, não por acaso, poemas de três mestres.


Até o próximo sábado.


N.E.I.'.


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Demasiada Loucura é o Mais Divino Juízo


Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -


Emily Dickinson, em "Poemas e Cartas"


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A meu irmão

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste, caravela, dor!

Fui tudo que no mundo há de maior:
Fui cisne, e lírio, e águia, e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou, um cínico riso de Chamfort...

Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...

Ah! de Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha,
Mágoa não sei de quê! Saudade louca!


Florbela Espanca, em "Livro de Sóror Saudade"


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Génio do Mal


Gostavas de tragar o universo inteiro,
Mulher impura e cruel! Teu peito carniceiro,
Para se exercitar no jogo singular,
Por dia um coração precisa devorar.
Os teus olhos, a arder, lembram as gambiarras
Das barracas de feira, e prendem como garras;
Usam com insolência os filtros infernais,
Levando a perdição às almas dos mortais.

Ó monstro surdo e cego, em maldades fecundo!
Engenho salutar, que exaure o sangue do mundo
Tu não sentes pudor? o pejo não te invade?
Nenhum espelho há que te mostre a verdade?
A grandeza do mal, com que tu folgas tanto.
Nunca, jamais, te fez recuar com espanto
Quando a Natura-mãe, com um fim ignorado,
— Ó mulher infernal, rainha do Pecado! —
Vai recorrer a ti para um génio formar?

Ó grandeza de lama! ó ignomínia sem par.


Charles Baudelaire, em "As Flores do Mal"

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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Nem todos serão cordeiros - Capítulo 1



De minha primeira infância, lembro-me muito pouco. Nos dias de calor, do fétido cheiro que vinha dos esgotos que corriam a céu aberto. Da coceira crônica em meu corpo, uma mescla da sujeira e das picadas dos insetos abundantes. Do chão rústico de cimento do barraco em que vivíamos e das ruas enlameadas e ingrimes pelas vielas da favela. De Dona Altamira, com quem ficávamos quando minha mãe ia ao trabalho ou quando passava a noite fora. E dos beliscões que a velha nos dava, quando chorávamos ou a desobedecíamos.



Das imagens de minha família, alguma coisa ficou. Mas tênues, suplantadas pelos conceitos e impressões adquiridas quando eu já tinha uma consciência mais apurada. Minha mãe, Bete, uma mulher até que bela, dentro das limitações impostas pela pobreza. Não haviam os cuidados necessários. Quando muito, um batom barato, alguma maquiagem mal feita, para as poucas ocasiões especiais que teve em sua vida.

Negra, cabelo ruim, sempre desgrenhados, dentição bastante prejudicada por caries e até ausências de dentes, já tinhas os peitos caídos pelas sucessivas gestações e pelo hábito de não suportá-los com um sutiã. Mas ainda chamava a atenção em nosso meio, quando saia à rua, com uma saia curta, colada às ancas, deixando a mostra suas coxas grossas e a bunda avantajada. Os homens do local, certamente imaginavam que havia muita safadeza a se fazer com uma mulher destas. E ela, não se fazia de rogada. Namorara muitos, engravidara mais quatro vezes durante o tempo em que convivemos. Tinha 23 anos e cinco filhos, quando eu fugi de casa.

Eu, o filho mais velho, parido sem o desejo de parir-me, aos 15 anos. Como aos meus outros três irmãos e uma irmã, esta a caçula, com seis meses de idade apenas. Nunca conheci meu pai, como meus outros irmãos também não viriam a saber quem eram os seus próprios. Nunca perguntei, ela nunca falou. Não falava de seus “homens”. Ficavam para trás, nas noites de forró e alguma cachaça. Foram incidentais em sua vida. Dependera deles para um momento, uma bebida, uma noite. Nóias da favela, de mesma idade e futuro presumido. Ou velhos aproveitadores de sua estupidez adolescente de outrora. Agora, transformada em desesperança e indiferença. Era sexo o que queriam? Então, abria as pernas, desfrutava de umas palavras amorosas, que nunca ouvia senão nua e submetida à satisfazê-los. Saciava-lhes as taras, suportava seus hábitos embriagados. Uma ervinha para relaxar, um lingerie ou bijuteria vagabunda, adquirida por R$ 5,00 dos marreteiros que as vendiam de bar em bar. Essa era sua vida. Não era perfeita, mas caminhava resoluta, entre os serviços de diarista doméstica e as tarefas de casa. Por vezes, nos acarinhava, fazia cócegas. Por outras, ralhava conosco. E chinelava nossas bundas, por alguma arte cometida.

Mas o que a enfurecia de fato, era quando brigávamos entre nós, irmãos. Lembro-me de uma vez, em especial. Eu tinha sete, meu irmão seis anos. E por disputarmos a tapas um carrinho de apenas três rodas, pego por ela em uma cesta de lixo, a caminho de casa. Ela caiu sobre nós dois como um raio da fúria divina. E cobriu-nos de chineladas. Desta feita, sem a menor preocupação de que o chinelo nos alcançasse as faces ou qualquer outra região do corpo. E quando se deu conta, ouviu enfim nossos apelos para que parasse, agarrou-nos pelas orelhas e assim, puxando-as com força, nos levou para a porta do barraco. Escancarou-a com um chute e apontando para as vielas estreitas e escuras gritou, com a voz transtornada:

- Vocês vão enfrentar isso sozinhos? Vocês vão enfrentar esse mundo aí de fora, sozinhos? Um sem o outro, sem a família, sem seus irmãos, não sobreviverão nem até a próxima esquina. Serão devorados, entendem? Estão me entendendo?

Tanto eu como meu irmão, mais a olhávamos, temerosos, do que para o cenário apontado por ela. Não tínhamos compreensão sobre o que falava. Mas jamais esqueceríamos suas palavras. Porque sentíamos que seriam importantes para a nossa sobrevivência. Só assim para entende-la e perdoar toda a sua fúria. Mas o fato, é que não me recordo de qualquer outra briga séria entre eu e meus irmãos. Um bate boca, um empurrão. Mas nada além disso. Bem ou mal, eu havia aprendido o que era uma família. E que seus membros se amparam mutuamente. Se protegem do mundo. Brigam, até matam se for preciso, para defenderem a integridade de um membro ameaçado ou ofendido. E minha mãe sabia disso. Havia aprendido da pior maneira: ninguém para defendê-la de seu destino e humilhações. Expulsa de casa ainda menina, por engravidar. Por me carregar em seu ventre. E ninguém para ampará-la. Nem um grito em seu favor, sequer.

Mas as coisas mudam. E nossa família também mudou. Uns dois meses após, Bete conheceu Agenor e o trouxe para morar em nosso barraco. Um sujeito de boa pinta, branco, pele morena de sol, cabelos loiros, olhos verdes, diversas tatuagens pelo corpo. Musculatura forjada em academias, sabe-se lá pagas com que dinheiro. Agenor não trabalhava. Mas tinha sempre seu maço de cigarros no bolso. Agenor. Nunca acordava antes das onze da manhã. Mas sua cerveja estava sempre geladinha, confortavelmente instalada em nossa geladeira quase vazia.

Conversa fácil, Agenor a agradava. Dizia-lhe juras de amor, a assediava até na nossa frente, com carinhos ousados e cochichos em seus ouvidos. E Bete sorria, gargalhava. Se trancavam no banheiro, único cômodo separado dos demais. Eu e meus irmãos, no cômodo único, ouvindo os sons estranhos que de lá vinham. Mas ele fazia bem para ela.

Seu permanente sorriso. Os carinhos que passou a dispensar aos filhos, o cuidado que passou a ter com o vestir-se, perfumar-se. Estava florescendo como mulher. Realizando-se no sonho do amor encontrado e compartilhado. Durante três meses, pude conhecer uma outra mãe: a Bete, que sonhava acordada. E sonhou e sonhou. Até que...

As palavras de Agenor já não eram tão doces. Era normal vê-lo pedir dinheiro para minha mãe – Não nasci para ficar preso dentro de um barraco. Vou jogar bilhar com os amigos – As lágrimas de minha mãe também se tornaram corriqueiras. Ela não falava nada. Nem para nós. Nem para ele. Tentara, mas ela a interrompera abruptamente, indagando se ela pretendia passar a “cuidar” de sua vida. Porque, se fosse assim, ele iria embora naquela noite mesmo. E ela calou, enquanto pode.

Fingia dormir, secando as lágrimas e engolindo o soluço, quando ele entrava cambaleante, de madrugada. Deitava-se ao lado dela. As vezes, desmaiava de bêbado. Noutras, matava sua fome de sexo, usufruindo o seu corpo. Nada mais.

E os sonhos de Bete foram-se, como vieram. Nos seus olhos, o retorno da indiferença e desesperança. Mas havia um componente novo. Algo que a machucava. Que arrancava lágrimas que antes não existiam. Havia a sensação de culpa. Por ter perdido a felicidade alcançada. De ter chegado tão perto, mas tão perto e...

Ela o amava? Não sei. Creio que amava mais a sensação de saber poder amar. E de ter sido amada. Ou crer nisso. E ver isso desfeito, arrancado de seus dias miseráveis, a alquebrou.

Ela ainda tentou. Criou coragem, reuniu o que ainda havia de dignidade em si. Recusou-se a abrir sua carteira, para que ele fosse a uma segunda rodada de bilhar com os amigos. Era frequente esse seu retorno lá pelas oito da noite, horário em que Bete já estaria em casa, após sua jornada diária e com algum dinheiro na bolsa. Agenor pedia, ela dava-lhe vinte, as vezes trinta reais, que ela sabia que seriam gastos em bebida e com outras. Como um dia, foram gastos com ela.

- Não – e foi a única palavra que a ouvi dizer. E então um primeiro tapa no rosto. Ela caiu. Ele ainda deu um chute em seu estômago. Eu pulei em cima dele. Mas o que podia um moleque de oito anos contra um homem formado, forte, no auge de seu vigor físico? Senti o impacto das costas de sua mão contra a minha face. Devo ter voado meio metro, de encontro a parede do barraco. Ele abaixou-se tranquilamente. Enfiou suas mãos nos bolsos da calça de minha mãe, que se contorcia ainda. Tirou o dinheiro. Contou os setenta reais da diária que ela recebera. Puxou uma das notas de dez e jogou sobre o rosto de Bete – Pro leite das crianças – Deu uma gargalhada e saiu pela porta.

Corri até minha mãe e a abracei. Meus outros irmãos, até agora encolhidos ao pé do sofá, também vieram. Demos um abraço, todos nós – Eu vou matar esse cara, mãe. Eu juro que vou! - E ela apenas abraçou-se em meu braço de criança. Sua cabeça sobre minhas pernas, uma mistura de sangue e lágrimas as umedecendo. Foi o momento mais feliz da minha vida. Sentir aquele calor de todos nós abraçados. Nos cuidando mutuamente. Como deve ser, em uma família.

Porém, a vida continuaria. E Agenor voltaria. Ela sabia, bem como nós. Então, Bete serviu-nos o jantar, uma sopa bastante pedaçuda com muitos legumes, como gostava de fazer nas noites frias. Antes das dez, estávamos em nossas camas. Silenciosos e atentos. O sono não vinha. Apenas a angústia nos apertando o peito.

Num horário incerto, Agenor entrou. Cambaleante como sempre, despiu-se totalmente e se deitou ao lado de Bete. Cochichava em seus ouvidos. Pedia desculpas, dizia ter perdido o controle, que ela o irritara, ele só queria uns trocos para beber com os amigos. Que não aconteceria de novo. Ele prometia. E até devolveu-lhe o dinheiro que não gastara: pouco mais de seis reais. Fizeram amor ali, na nossa frente. Como no início, quando ainda havia encanto nos olhos de minha mãe. E nessa hora, com o rosto ainda a latejar, odiei-a como nunca odiei alguém em minha vida.

A nova lua de mel durou alguns dias. Agenor preso em casa, feito besta arrancada de seu habitat, ralhava conosco na ausência de Bete. Enchendo-a de palavras amorosas, quando chegava do trabalho. Mas numa noite sem nenhum porquê especial... chutes mais fortes, socos em profusão. Um dia, noutro. Então, começamos, eu e meus irmãos a apanhar também, durante a ausência de nossa mãe. Por nada, por um olhar de ódio.

Não havia mais família. Eu não a amparava mais. Ela não se importava em ver nossos hematomas. E a vida apenas seguia. Um menino de oito anos sonhando com o dia que tivesse coragem para enfrentar aquela viela. Sem família. Só. E convicto de que sobreviveria, a qualquer custo.

Era um domingo de Dezembro, próximo ao natal. Acordei cedo. Não haviam mais aulas, mas mesmo assim, quis pular da cama as seis da manhã. Sem fazer barulho, aproveitando-me do sono pesado de Agenor e de minha mãe, após uma noite de bebedeira de ambos, mas ela só, em casa, e ele num bar. Fucei os bolsos da bermuda de Bete e tirei alguns trocados: R$ 28,40. - Minha herança – pensei ao enfiar o dinheiro no bolso e sair pela porta do barraco. A mochila escolar com umas poucas roupas e mais nada.

Na cabeça, a vontade de vencer. No coração, o desejo de um dia voltar. E me vingar de Agenor.


Gostou? Então leia também o Capítulo 2 - Clique aqui

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Lava-pés

Fábio olhou para seu relógio de pulso. O que viu, não foi nada bom – Quatro da madruga. Vai dar merda de novo.
Seus pensamentos não eram totalmente embriagados, porém nem absolutamente lúcidos. Tinha consumido uma boa quantidade de cerveja – E um conhaque! - para calibrar a libido. As sexta-feiras tinha essa liberdade provisória. Ou tivera, até que Marina o obrigara a confessar a infidelidade praticada – Nossa, que dia infernal...
Ainda eram-lhe vivas a lembrança do episódio. Do choro da mulher, das perguntas intermináveis, dos tantos “por ques” aflitos e de suas súplicas por compreensão e perdão – Porra, era um homem – e suportara bem a condição de casado por sete anos. Mas naquela noite, após infindáveis cervejas e gargalhadas entre amigos, Glorinha pareceu-lhe irresistível – Destino mesmo.
Uma mulher vulgar, que vestia-se apenas para se expor, para ressaltar sua fartura de carnes – Gordinha sim – Vulgar, falava obscenidades que nem os marmanjos se atreviam. Insinuante como uma serpente, cheia de toques com as mãos e resvaladas provocantes, tão devassa em pensamentos e atitudes. Tão diferente da sensatez e inteligência de Marina - Com resistir?
Sóbrio, atravessava a rua e fingia não vê-la. Mas após o consumo de álcool, preso ao mesmo recinto e conversas... - Ah, Glorinha... que trepada infernal que tivemos! - a mulher era mesmo diabólica numa cama. Todos os desejos satisfeitos, todas as curiosidades saciadas. E além dos limites, um quarto de descobertas pecaminosas.
Não teve como Marina deixar de perceber. Por mais que preferisse não tomar ciência do fato, Fábio mudará a olhos visto após o início de seu romance com Glorinha.
Marina até que tolerou o comportamento do marido por alguns meses. Foi vendo as noitadas de cerveja invadirem os dias úteis, os horários de retorno cada vez mais distantes. Até que algo se rompeu dentro dela. Tinha que saber, tinha que entender o porquê, o que faltava nela, Marina, como mulher?
Mas era fato sepultado, julgava Fábio. Após aquela noite de acertos de contas, há oito meses, as coisas voltaram a normalidade. Fábio ia ao trabalho, voltava para casa. Jantava e assistia TV com a esposa. E até o relacionamento sexual entre eles foi reavivado, por algumas semanas. Como nos tempos de namoro, faziam sexo todos os dias. Até duas vezes por noite – Se bem que... - Mas tinha que se acostumar. Nenhum prazer ou loucura valia a companhia de Marina. Uma mulher bela, dedicada, inteligente e fiel – Sim, principalmente fiel.
Fábio abriu a porta com todo o cuidado, evitando ao máximo qualquer ruído. Mesmo desconfiando de que nada lhe adiantaria tanto silêncio. E suas suspeitas estavam corretas.
Marina estava sentada no sofá da sala, abajur aceso. Fábio tentou ver se os olhos dela estavam inchados, por tanto chorar. Mas não. Apenas o olhava, serena.
- Marina, eu sei o que você está pensando. Mas...
- Pára, Fábio. A gente já teve nossa conversa. Você não precisa dizer nada. Alias, você não precisa nem inventar nada. Porque no mínimo, eu mereço a verdade. Fiz por merecer. Por meses. Por te tolerar, por suportar seu hálito de cerveja, seu cheiro de perfume barato. O sabor de sexo vulgar em sua boca...
- Marina...
- Ah, cala a boca, e vem dormir. Quando você estiver sóbrio, quando tiver um mínimo de vergonha na cara, conversaremos. Se... ah, deixa. Vamos dormir e amanhã veremos como fazer.
Dito assim, levantou-se e caminhou para o quarto. Fábio atrás, como um menino pego em flagrante delito pelos pais. Cabeça baixa, mudo, envergonhado – Que merda que eu fui fazer, Meu Deus... - lamentava-se em pensamentos.
No quarto, Marina tirou a camiseta e jogou-a no chão. Fábio ficou a admirá-la em sua nudez. A pele bem clara, contrastante com os cabelos negros e os lábios vermelhos. Olhos de um mel profundo. Nem magra, nem gorda. Seios médios, ligeiramente caídos pela ação do tempo. Mamilos rosados, abdômen quase inexistente, quadril estreito, porém acentuado na cintura. Enfim, uma mulher bonita, agradável de se ver – E decente - muito mais do que Glorinha, certamente – Ah, Glorinha... por que você teve que me provocar novamente?
Marina deitou-se na cama e olhou para Fábio – Então, não vem?
Fábio despiu-se, entre uma e outra cambaleada e deitou-se ao seu lado, mantendo uma relativa distância de segurança. Tinha medo de tocá-la. Tinha medo de que ela cobrasse-o por uma noite de sexo e ele falhasse, como da última vez em que brigaram. Álcool, vergonha, arrependimento, várias trepadas depravadas durante as últimas horas... uma combinação letal para seu desejo.
Mas desta feita, Marina não abriu a boca. Desligou a luz da luminária e condenou os dois a escuridão e ao silêncio. Fábio ainda demorou alguns minutos para ser vencido pelo cansaço. Mas nem as especulações sobre o “amanhã” lhe deram forças para mais.
Acordou com a velha dor de cabeça pós balada. Mas nem lhe incomodou tanto quanto o peso em seus braços. Quis trazer suas mão aos olhos, para coça-los e eles simplesmente recusavam-se a obedecer. Até que vislumbrou-os presos à cabeceira da cama, por um par de algemas – Que porra é essa? - resmungou, enquanto corria os olhos por seu corpo, vendo-se preso pelas pernas também. E completamente encapado por filme de PVC, próprio para embrulhar alimentos.
Marina, sentada em uma cadeira a sua frente, fitava-o, sem qualquer expressão em sua face - Dormiu bem? - e não havia ironia em sua voz tampouco, apesar da pergunta. Quisera apenas chamar a atenção de Fábio.
- Que você está fazendo, sua louca? Que merda é essa? - esbravejou em vão. Marina apenas levantou-se da cadeira e caminhou até a penteadeira do quarto. Ao lado desta, malas prontas para uma longa viagem. Sobre o móvel, uma urna de cerâmica, bojuda, com uns 30 centímetros de diâmetro na parte mais larga e uns 45 de altura. Apanhou o pote e veio até a borda da cama, com o mesmo caminhar lento e cadenciado.
- Sabe Fábio, imaginei esta nossa conversa por toda a noite, enquanto te esperava. Mas quando deitamos, lado a lado, eu sentindo o cheiro do álcool e daquela vagabunda em você... - balançou a cabeça lentamente - Você nem me tocou! Não há mais o porquê de mais uma conversa...
- Espera, Marina. O que é isso, esse pote? O que você pretende fazer? Pense nos momentos que tivemos, pense nos seus pais, como vão lidar com a vida se você fizer uma bobagem.
- Será problema deles, Fábio. Quanto ao pote... - desrosqueou a tampa até ouvir um pequeno estalo – Não sei se você percebeu, mas apenas o seu pênis está livre do filme. Exposto...
- Escuta, olha.... vamos conversar direito mulher – Fábio gaguejava, olhando em desespero suplicante para Marina. Não sabia detalhes de seu plano. Porém, tinha a certeza do pior porvir.
- Lava-pés. Ou formigas de fogo. Uma das ferroadas mais dolorosas da natureza. Carnívoras, aterrorizam pessoas e aminais da região amazônica. Carnívoras... Não tanto quanto nos filmes de Hollywood. Afinal, são formigas e não piranhas – e dito isso, tombou a urna numa abocanhada envolvente sobre o membro do marido – Umas cinco ou seis mil delas dentro deste pote. Vindas do laboratório da Universidade e criadas no porão, com todo o cuidado. Só aguardando...
Fábio urrou de desespero. E em seguida, urrou e urrou de dor a cada ferroada que sentia. Mas Marina nem lhe prestava atenção. Com as malas na mão, saía pela porta da frente de sua casa. Para uma viagem. Sem destino certo. Apenas para longe da mediocridade e hipocrisia cotidiana – Com um pintinho desses, em minutos o serviço estará feito - e ele poderia pensar nisso, enquanto o veneno das formigas fechasse sua garganta e o matasse por asfixia – O que é uma pena. Me daria mais prazer imaginá-lo sentir as entranhas devoradas também.
O carro partiu e em segundos a casa ficou diminuta no retrovisor. Os gritos de Fábio eram apenas lembranças de um passado de equívocos.

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