Comunicado Importante - 3 contos do blog serão publicados

É com muito orgulho que venho anunciar, que eu Debby Lennon e Sandra Franzoso iremos participar da antologia Jogos Criminais. A Antologia será lançada no dia 15/01/2011, Na Biblioteca Viriato Correa, situada a Rua Sena Madureira, 298 - Vila Mariana. Meus contos Anjo Perdido e Joana e Maria, já foram postados aqui no blog e agora está aperfeitoado e com mudanças no final,o mesmo acontece com o conto O Noivado da Sandra. Maiores informações em breve.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Vá e não peques mais

- Me perdoe Padre, porque eu pequei...

Gustavo inala sofregamente todo o ar cabível em seus pulmões e senta-se de súbito em sua cama. As imagens a sua frente eram pouco nítidas, em parte pela escuridão de seu pequeno quarto na pensão de Dona Olívia, em parte pela confusão provocada por um sonho recorrente, assombrado por vozes do passado. Inclina seu corpo e tateia o soalho do dormitório, em busca de seu maço de cigarro e isqueiro. Pagava R$ 250,00 a mais por mês, para Dona Olívia, só para ter o privilégio de não dividir o quarto e poder socorrer-se em algumas tragadas nos momentos críticos, sem ser censurado por um eventual companheiro.

Ajeita os travesseiros na cabeceira da cama, criando um encosto estofado e confortável para suas costas. Leva o cigarro a boca e dá um longa tragada. Seus olhos se habituam à escuridão da madrugada e os limites de seu pequeno quarto podem ser vislumbrados, ainda que sutilmente. Porém, não era a visão do quarto que ansiava, mas as imagens que provocariam mais uma noite de insônia. Reclina sua cabeça para trás e, ao mesmo tempo em que expele uma bolha expansível de fumaça, fecha os olhos, mergulhando na obscuridade de suas memórias...

Não podia deixar de supor que sua vida teria sido plena, se não fosse por uma tarde, num confessionário, há quase seis anos.

Gustavo tinha vinte e oito anos, na época. Era o Padre Gustavo da modesta Paróquia de Nossa Senhora de Guadalupe, Protetora dos Nascituros. Uma igreja simples, sem qualquer ostentação. A nave principal, talvez abrigasse umas quarenta pessoas. Mas isso ocorria somente em dias de casamento. No restante, os poucos fiéis de sempre, pessoas de mais idade e tradicionalistas.

Há muito, o povo do interior de São Paulo perdera sua convicção nos ritos da fé. Criam em Deus, Jesus e eram quase todos devotos de Nossa Senhora. Gustavo tinha a mais absoluta certeza disso. Porém, não viam mais nas Igrejas o caminho para chegar a Eles, aos seus Salvadores e Protetores – A Igreja precisa se encontrar com o povo novamente. Ter o unguento para suas aflições e temores – lembrava-lhe o velho Padre Anselmo, titular de fato da paróquia, porém já bastante alquebrado pela idade e incapaz de celebrar sequer uma das duas missas diárias.

Foram três bons anos, aprendendo com o Velho, rezando as missas diárias e ouvindo seu rebanho no discreto confessionário, ao fundo da igreja. Até aquele sábado.

Ouviu Dona Anita, uma senhora miúda, quase esquelética, estragada mais pela desnutrição e maus tratos da vida do que propriamente por seus 70 anos de vida. As mesmas mazelas e inocentes pecados de sempre, da briga com a neta, da discussão com o genro, a quem jurava respeitar – mas que me tira do sério - como ouviu seu Nestor, o prefeito da cidade. E do mais humilde ao mais poderoso, ninguém lhe confessava algum pecado que merecesse uma preocupação maior com a saúde moral da comunidade. As vezes, instigava-os até a um trabalho social, junto as populações menos favorecidas como forma de alívio para o tormento e punição pelo pecado confessado. Uma novena, algumas ave marias e pai nossos, mais habitualmente. Se os moradores da cidade tinham pecados maiores, não era ao seus ouvidos que os confessavam – e pode ter certeza que eles tem, meu filho. Pecados inomináveis! - brincava o Padre Anselmo. Mas Gustavo gostava de ouví-los, por vezes ingênuos, noutras tentando “enganar um pouquinho à Deus e ao Padre”, mas fundamentalmente, comparecendo e mostrando a importância que poderia haver em um par de ouvidos pacientes.

Foi então que Padre Gustavo ouviu um abrir diferente da portinhola de seu confessionário. Um abrir cuidadoso, quase sorrateiro, diferenciado de todos os outros que estava habituado a ouvir. Deveria ficar feliz. A possibilidade de um novo fiel, de alguém mais em comunhão com a Igreja e com Deus. Porém, no seu peito sentiu um incômodo, um aperto. Suspirou, espantando seus temores e procurou se concentrar em suas obrigações, declamando o início da confissão, ao ouvir o assento do banquinho rangir.

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

- Amém – respondeu uma voz grave e rouca do outro lado da divisória em treliça - Padre, me perdoe, porque eu pequei.

- Que o Senhor esteja em seu coração e palavras para que, arrependido, confesse seus pecados.

- Eu nunca me confessei antes, Padre. Vivia e acreditava que Deus me perdoaria por meus pecados, sem que alguém precisasse interceder, quando chegasse a hora. Porém, percebi estar errado – a rouquidão da voz solenemente fez uma pausa. Talvez buscasse perceber a repercussão de suas palavras, talvez quisesse apenas tomar um fôlego e organizar suas idéias para prosseguir com seu relato. Porém, ao Padre Gustavo não restava mais qualquer dúvida: este era um homem sinistro e que estava por confessar um pecado abominável.

- O que importa para Nosso Senhor Jesus Cristo é que você se arrependa, confessando seus pecados. Ele pode a tudo perdoar, se for sincero o seu arrependimento.

- Hoje eu sou um homem feito, Padre. Quarenta e cinco anos, um cirurgião brilhante. Ganho muito dinheiro em São Paulo. Sou admirado e respeitado por todos meus amigos, clientes e colegas de profissão. E praticamente, atravessei o Estado para chegar nesta Igreja, de Nossa Senhora de Guadalupe, para confessar-lhe que minha história nem sempre foi respeitável assim... - e a Voz fez uma nova pausa. Padre Gustavo não resistiu a tentação e focou seu olhar sobre as frestas da treliça. A Voz tinha a tez bem clara, porém com bochechas rosadas, macilentas, cabelos levemente grisalhos. Um riso discreto permanentemente desenhado em seus lábios. O rosto que personificava a bondade, a retidão. Estatura mediana, talvez um metro e setenta, pouco mais pouco menos. Não era gordo nem magro. Vestia-se elegantemente, num terno cinza claro, gravata azul quase marinho, camisa reluzentemente branca e bem passada. E numa avaliação desta superfície diria-se – Ali está um bom homem – Porém, Padre Gustavo sentia em sua alma que não. E temia por cada nova palavra a ser dita.

- Minha mãe era uma puta, Padre. Não dessas que ganham a vida fazendo sexo. Mas por vocação mesmo. Não sei quem é meu pai. Possivelmente um dos muitos bêbados e drogados que ela levou para casa, nos finais de noite. Eu me lembro da primeira vez que a ouvi – a Voz sorriu levemente – morávamos num pequeno apartamento no centro da cidade. Dois quartos fétidos, sempre imundos, grudados parede a parede. “mete mais, mete mais seu puto! Me come!”. Eu tinha cinco anos, Padre. E passei a noite de olhos abertos, ouvido colado na parede do quarto, temendo por minha mãe. Pelas dores que estava sentindo... - E a Voz fez-se gargalhada. Alta, grave, descontrolada.

- Meu filho...

- Padre, é importante que eu conte, que o senhor saiba e entenda. É importante.

- Ele tudo sabe, filho. Você não precisa se defender ou se torturar. Apenas se arrepender...

- E eu me arrependo, Padre. Muito! Não desses pecadinhos. Não por ter colado o ouvido na parede. E nem por ter me escondido dentro do guarda-roupas dela, pouco mais de um ano após.

- Você...

- Eu precisava! Eu tinha que ver as imagens que me traziam os sons, os pesadelos... Era preciso saber. Só assim eu poderia ter meu sono e paz de volta, eu pensava...

Padre Gustavo ouviu um prolongado suspiro, carregado de dor e sofrimento. Pensou em abordá-lo novamente, dissuadi-lo de pormenorizar sua história. Mas sabia não ter forças para deter esse homem. Teria que ouví-lo até o fim.

- Então aconteceu numa sexta-feira de madrugada. E eu estava a tanto tempo lá dentro do armário, prensado por roupas, cabides e cobertores, que dormi. Acenderam a luz do quarto, passos trôpegos, cambaleantes. Risos embriagados. Acordei assim. Cuidadoso, pois me lembrava onde estava. Temia pela minha sorte se me descobrissem. Minha mãe tinha a mão pesada. E paciência nenhuma. Não lhe custaria nada me espancar mais uma vez... O guarda-roupas era antigo. Daqueles em madeira mesmo, entalhes e fechadura. Nada de aglomerados, daquela quase serragem que tentam nos vender hoje... Foi pelo buraquinho da fechadura que pude vê-los. Loucos, como dois loucos... - a Voz serve-se de mais uma pausa. Gustavo o vê baixar a cabeça e cobrir os olhos com uma das mãos. Mas não estava chorando. Parecia apenas esforçar-se para ter mais nitidez em suas lembranças – Eles se beijavam muito, exploravam seus corpos com violência, forçando frestas em suas roupas, até se livrarem completamente delas. E eu fiquei olhando. Minha mãe naquela cama, gemendo, urrando. Sua barriga lustrosa, gigantesca, de uma gestante de 7 meses. E o homem sobre ela, estocando forte, violento. Via a musculatura dele brilhar com o suor. Um peão de obra talvez, pela força física talhada no trabalho. Não havia sinais de cuidado ali. De academias ou malhação coordenada para a produção de músculos perfeitos. A força dele vinha da rudeza de sua vida – A Voz fez novamente uma pausa. Levantou a cabeça e colou-se à treliça divisória. Padre Gustavo podia sentir seu hálito – O senhor já viu uma expulsão de feto? Um aborto espontâneo?

Gustavo sentiu seu corpo gelar, ao mesmo tempo em que sua cabeça parecia dar voltas no ar. Aquele homem não era humano. Ele era mau, a personificação do mal. E Gustavo precisava escapar. Porém era tarde e sabia-se refém da Voz. Jogou a cabeça para trás, fechando os olhos. E as imagens vieram, claras, nítidas como em um cinema. Podia ver pelos olhos da Voz.

O homem, pele negra, brilhando de suor, penetrando a grávida com tamanha violência que se alegaria um estupro. Os gemidos enlouquecidos até o grito de dor – que porra é essa? - gritou o homem ao ver seu membro encharcado de sangue. Cambaleante, levantou-se da cama. A grávida se contorcendo na cama. O sangue derramando-se sobre o lençol, em golfadas, e ela implorando – me ajude, me ajude – Rapidamente ele se veste e sai em disparada do quarto, ainda calçando o tênis sem meia mesmo. Não buscaria ajuda alguma. Não se envolveria com policia – eu só queria dar uma trepada.

O choro apavorado de Débora – sim, esse era seu nome – Padre Gustavo podia senti-lo. Talvez a Voz o pronunciara, talvez sua imaginação o buscara. E então o garotinho, abrindo a porta do guarda-roupas e pisando no assoalho de madeira sem lustro algum – filho... Otávio. Corre, vai até o apartamento da Marta e chama uma ambulância. Pelo amor de Deus filho – e Débora se contorcia. Porém, Otávio permanecia ali. Olhando o sangue, olhando o sexo de sua mãe abrir-se e iniciar a expulsão de um pequeno bebê. A mulher gritou forte, seguidas vezes, dobrando-se ao meio. Otávio deu dois passos a frente, ficando bem próximo a mãe. Ela ainda olhou para ele, com os olhos suplicantes – chama ajuda meu filho. Vai... - E foram as últimas palavras que Débora disse, antes de ser atingida pelo ferro de passar roupas, que Otávio trouxera de dentro de seu esconderijo. Não houve tempo para protesto ou surpresa. A mulher simplesmente desabou, rosto desfigurado, crânio amassado.

Otávio se sentou na cama, separou as pernas da mãe. A criança ainda não havia sido expulsa completamente. Então, com suas mão aos redor da cabeça, puxou-a até que saísse por completo. Parecia sem vida, morta como a mãe. Tocou em sua pernas, balançando-as. Empurrou sua cabeça para os lados. E então, a coisa mais estranha do mundo aconteceu: um choro, vindo daquela menina suja de sangue. Otávio deu um pulo, assustado. Porém, se conteve e ficou olhando a criança mexer convulsivamente as pernas e os braços. Foram uns dois minutos. Não mais que isso. E o ferro de passar silenciou a criança.

Padre Gustavo arfava. Sentia suas roupas cerimoniais grudadas ao seu corpo. Transpirava descontroladamente e percebia-se possuído pela história que ouvia. Era um estranho dentro de seu próprio corpo. Não tinha mais o domínio de si próprio. Submetido a uma história hedionda, sem poder gritar por socorro, sem poder evitar as imagens que vinham-lhe à mente.

- E eu fugi de lá, Padre. Na verdade, calmamente saí do apartamento e busquei refúgio nas ruas. Vivi assim por algum tempo. Até que Dona Lígia resolveu me tirar da rua. Me levou para sua casa, legalmente procurou se informar sobre quem eu era. Mas nada havia. Ninguém para reclamar minha posse. Apenas minhas histórias inventadas sobre um abandono. Frequentei boas escolas, me dediquei muito, porque tinha um objetivo definido na vida: ver um nascimento novamente. E assim, me tornei ginecologista e obstetra. Nunca tive filhos meus. Porém, trouxe muitos ao mundo. Tive poucas mulheres. Todas clientes grávidas em estado avançado, adulteras ou mães solteiras. E, Padre, como eu trepei! Forte, vigoroso. Mas tudo isso era pouco. Não me tirava a dor, a angústia. Perto do que acontecera antes... era muito pouco. Então... - a Voz fez uma pausa profunda, mediante um suspiro que prenunciava o fim de sua história - Eu vou deixar um jornal sobre o banquinho. Esta foi minha 13a. vítima. A décima terceira mulher grávida em quem provoquei um aborto e matei: mãe e criança – Otávio se afasta da treliça e recosta-se sobre a parede - Me perdoe, Padre, porque eu pequei. E me arrependo com sinceridade e verdade em meu coração. Me arrependo profundamente, com a alma doída. Não suporto mais essa vida de mortes e sangue. Mas não tenho forças para resistir a essa necessidade, a essa angústia. Só o seu perdão poderá me dar a paz e a redenção para me livrar dessa maldição. Por piedade, Padre: dê-me seu perdão. Eu lhe suplico.

Padre Gustavo abana a cabeça em, sucessivos “nãos” - Como poderia? Como esse homem ousava pensar que tudo era tão simples assim? Era um louco, insano, que invadira sua mente com esta repugnante história, sua crueldade – pensava Gustavo, torturando-se profundamente na esperança de retomar sua lucidez – Eu não posso! Nem Deus poderia... o que você fez, doutor Otávio... eu não posso!

- Então não há esperança para mim. E nem para as gestantes que eu possa encontrar... Padre, faça-me um último favor. Reze à Nossa Senhora de Guadalupe. A prece em favor dos nascituros. E peça a ela que interceda por mim. Que obtenha o perdão dos que sacrifiquei.

E numa fração de segundos, um clarão, um estrondo. O corpo de Otávio tomba e arrebenta a portinhola do confessionário. Os poucos fiéis na igreja ainda chegam a tempo de verem o Padre Gustavo ajoelhar-se frente ao cadáver, fazer o sinal da cruz em sua testa ensanguentada e dizer-lhe – Então vá. E não peques mais.

Na mão de Otávio, ainda fumegava o cano do revólver calibre 38. Nos olhos de Padre Gustavo, incontidas lágrimas lhe diziam que sua profissão de fé o tinha abandonado, ao estampido daquele disparo.

7 comentários:

Sandra Franzoso disse...

Impressionante! Muito bom!
Um conto espetacular... agora, lá no começo, quando "ele leva o cigarro à boca e dá uma longa tragada, depois expele uma bolha expansível de fumaça", é de tentar qualquer ex-fumante rsrs... aff!
Parabéns pelo conto sensacional! Beijo.

LISON disse...

Saudações!
AMIGO JOSÉ SIDNEY,
Nota 1001 prá você!
Vou ti contar...Que conto extraordinário!
É puro tnt...Parabéns pelo excelente texto!
Abraços!LISON.

Terezinha Bolico disse...

Você sabe que eu gosto de contos e sou fã de Rubem Fonseca (O homem de fevereiro e março, feliz ano novo etc...), teu estilo é aquele, que leva a gente a ter a respiração acelerada durante a leitura.
Dizer que é ótimo não expressaria o que sentí, posso dizer que teus textos aqui poderiam estar editados em livros...com certeza.
Vou ficar aguardando ansiosamente o próximo...
abração.
terezab

Unknown disse...

Vá e não peques mais .... Ok. Sem comentários para o conto, muito bom, entretanto o titulo (palavras do padre) beira ao cinismo ....

Anônimo disse...

Genial ,, uma verdade que assombra muitos, por viver carregando cadaveres do passado em suas mentes, embora as vezes quando temos oportunidades de fazer a coisa certa ,não pdemos deixar de faze-la, as vezes os acontecimentos em nossas vidas são como aguas que passam debaixo da ponte, nunca voltam , Zé parbéns irmão que DEUS sempre esteja a te usar para clarear a muitas mentes, que se prendem ao lado negor ,, paz ,, e um bom final de semana !!

Debora Gimenes disse...

Quando eu crescer quero ser igual a você... excelente conto, digno de um escritor premiado. beijos

Altemar Rocha disse...

Seus contos são sempre bem escritos e nos prende a atenção.
Quantos Otávios existiram e quantos ainda existirão?
Mas vamos ficar na ficção.

Agora, toda vez que entro nesse blog me assusto. Só depois que lembro de onde estou entrando. rsrs.
Preciso me acostumar.

Um abraço e sucesso, irmão.

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