Comunicado Importante - 3 contos do blog serão publicados

É com muito orgulho que venho anunciar, que eu Debby Lennon e Sandra Franzoso iremos participar da antologia Jogos Criminais. A Antologia será lançada no dia 15/01/2011, Na Biblioteca Viriato Correa, situada a Rua Sena Madureira, 298 - Vila Mariana. Meus contos Anjo Perdido e Joana e Maria, já foram postados aqui no blog e agora está aperfeitoado e com mudanças no final,o mesmo acontece com o conto O Noivado da Sandra. Maiores informações em breve.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

A Santa Imolação

- Me safar, Maninho? Me explica como é isso? Como um pai que segurou o filho nos braços...

Emanuel fecha os olhos, apertando com força as pálpebras, ao mesmo tempo em que tenta equilibrar o inspirar e expirar. Porém, o tremor nos maxilares não se aquieta. Esfrega as costas da mão sobre os olhos, abortando as lágrimas por nascerem.

- Ele tinha oito anos, Maninho. O moleque era alegre, não maltratava ninguém. Estudava muito, só tinha notas boas... ele iria sair daqui um dia, Maninho. Seria “gente de bem”. A primeira pessoa em minha família que seria.

Emanuel luta contra suas emoções novamente, desta vez socorrendo-se em uma pausa prolongada nas palavras e o acender de um cigarro. Dá umas boas tragadas até erguer os olhos de encontro aos de Maninho. Sente-se timidamente satisfeito, ao ver o horror nos olhos de seu interlocutor. E sente-se homem por enfim poder olhá-lo nos olhos, sem temer, sem ser submisso, refém das vontades do outro.

- Me explica como é isso, Maninho? Eu vi o sangue encharcar o peito da camisa dele, eu contei cada gemido e suspiro. Eu o ouvi implorar, Maninho: “pai, pai, me ajuda. Tá doendo muito. Eu não quero morrer... Me ajuda, pai.” E eu disse que tudo iria ficar bem, que eu não deixaria que ele morresse – aperta o cigarro entre os lábios e puxa uma boa porção de fumaça para dentro de sua boca - Eu menti pra ele. Minhas últimas palavras para o meu filho foram uma mentira, Maninho!

Emanuel não tinha mais forças para segurar a emoção. Baixa a cabeça e o olhar e deixa que o pranto desfigure seu semblante. A sua frente, assustado, sem compreensão da dimensão do que estava por ocorrer, Maninho o fita. Sente ódio de Emanuel. Ódio desse senhor de quarenta e tantos anos, baixo, magro, fraco... Como ele pudera aprisioná-lo? Como ele pudera fazer Maninho refém, deixá-lo a sua mercê? Emanuel era apenas um homem comum. Um homem como tantos outros moradores daquela favela miserável. Mais um dos que viravam o rosto ou baixavam os olhos para não “verem”, na esperança de não “serem vistos”. E agora Maninho estava ali, preso aos grilhões na parede crua de alvenaria, olhando para Emanuel – Um merda – mas que o fizera prisioneiro.

- Caralho Emanuel! E você acha que me matar vai resolver isso? Você vai é foder com tudo de uma vez. Você tem família, você tem mais dois filhos. O que você acha que vai acontecer com eles? Assim que meu pessoal souber que foi você... cara, você é um homem morto!

E Emanuel gargalha, levantando a cabeça e olhando para Maninho. Limpa o rosto com o punhos da camisa. Levanta-se da cadeira e acocora-se frente a seu prisioneiro. A centímetros da face de Maninho, sente seu hálito podre, ve o medo em seus olhos. E sente-se poderoso, como nunca. Aperta o pescoço de Maninho. Não para matá-lo, mas apenas para vê-lo sofrer com a escassez de ar

– Desde que nasci, Maninho, sou um homem morto. Rastejando pelos becos, como uma pálida sombra. Fugindo da violência e insultos de meu pai, fugindo dos moleques enturmados aqui na favela e na escola, rezando para ser deixado em paz por todos. Para poder viver minha vida. Só isso... Mas que vida tem um homem morto? - solta a garganta de Maninho, empurrando sua cabeça de encontro aos tijolos da parede.

Regozija-se ao ver dor e medo nos olhos de seu prisioneiro. Levanta-se revitalizado, sem tirar os olhos de Maninho. Subjugar aquele homem lhe dava força, lhe dava vida. A vida que nunca tivera. Vira-se e caminha até uma pequena janela basculante, esculpida junto a porta de entrada daquela cozinha em construção. Lança o olhar pela frestas entre as abas. Parecia procurar por alguém, por alguma notícia ou manifestação do mundo lá de fora. Porém, na escuridão da madrugada ficava difícil ver com clareza. O local era pouco iluminado. Quase como na favela de que vinha. Na favela de Maninho. Sombras e mais nada. Olha para seu relógio e pensa – Alfredo está atrasado – e isso podia ser preocupante. Volta-se para a cadeira e senta, apontando a arma para Maninho.

- O mais cruel Maninho, é que precisei de você e daquela corja de vagabundos que cuidam do tráfico na favela... de você e daqueles policiais canalhas que deram a batida. Precisei que meu filho mais novo morresse para poder descobrir o quanto eu mesmo já estava morto. E o quanto não valia nada aquela vida. Você vê, Maninho? Entende? Eu devo a vocês essa descoberta. E eu devo a vocês ter renascido.

- Você acha que me matar vai te fazer vivo? - e Maninho pôs-se a gargalhar. Quase histérico, tentando entender o que passava pela cabeça de Emanuel. Percebeu que seu algoz mantinha os olhos fixos nele, sem qualquer expressão no rosto. Maninho não podia desequilibrá-lo. Não podia fazer com que puxasse logo aquela porcaria de gatilho e acabasse com sua espera. Não tinha medo de morrer. Entretanto, se horrorizava por ser subjugado. Conhecia a crueldade. Praticava a crueldade com maestria. E um tiro, um único disparo em seu peito, lhe parecia uma morte boa e digna - Emanuel, pensa bem... eu não dei nenhum tiro. Meus camaradas se defenderam, revidaram os disparos dos homens. Dos policiais que mataram seu filho. Foram eles, Emanuel. Você sabe que foram – Emanuel continuava a olhá-lo, impassível – Faz assim: me solta. Eu deixo pra lá. Te mato, mas com honra, com dignidade. Um tiro na cabeça e acabou. E libero uma grana legal para tua mulher, para teus filhos. Eles vão poder sair daqui. O que me diz? É um bom trato. E não matei teu filho, porra! Aceita então.

- Todos nós o matamos, Maninho. Cada morador dessa maldita favela, cada policial e traficante. Cada pessoa nessa cidade que não fez nada, nada mesmo para impedir que isso acontecesse. E acontecesse de novo e de novo e de novo – balançou a cabeça levemente, numa negativa – Quantas vezes eu vi isso na TV? Quantas crianças mortas, velhos mortos, mulheres mortas. Por balas que eram para você, Maninho. Para os policiais... e eu não abri minha boca, se não para uns resmungos de piedade. Não movi um músculo... Até que foi o meu filho. E eu tive que passar por essa dor para saber. Seis meses em agonia, sofrendo por não ter feito nada, para agora saber que preciso fazer. Para não acontecer de novo.

- E me matar vai acabar com as balas perdidas, seu velho de merda?

- Eu não vou te matar, Maninho. Você é lixo, escória. Não representa nada pra ninguém. Nem para os seus. No outro dia, teria um novo chefe do tráfico. No outro dia, tua mulher botava um outro homem na cama. Você não vale nada e não tem serventia para o meu plano.

- E pra que você me pegou, seu porra?

- Para assistir a dor nos seus olhos, como eu assistia a TV antes de meu filho... - e as batidas na porta cortam suas palavras. Aguça os ouvidos, tentando buscar mais sons, mais pistas.

- Emanuel, abre. Sou eu, Alfredo.

- Até que enfim – disse Emanuel, levantando-se rapidamente de sua cadeira e correndo em direção a porta. Abriu-a.

Alfredo era um senhor negro baixinho, pouco mais de 1,60 de altura, barrigudo, camisas puídas sempre para fora das calças bastante manchadas pelas tinta dom ofício de pintor. Alguém que há muito tempo, não se importava. Viúvo, dois filhos presos por tráfico de drogas, camaradas de Maninho. Ao lado dele, um homem branco, forte, 1,80 e tanto de altura, fardamento da policia, cabeça encoberta por um capuz negro. A cena era até que cômica. Ou surreal. Como um pequenino daqueles conseguira a proeza de capturar aquele grandalhão?

- E então? - indagou-lhe Emanuel, dando passagem para que Alfredo e seu prisioneiro entrasse.

- Me ajude a prendê-lo na parede – pediu Alfredo. Os dois sentaram o homem ao lado de Maninho, que assistia com surpresa a tudo aquilo. Abriram as algemas presas por trás das costas e prenderam-as nas presilhas fixas na parede. Alfredo puxou o capuz negro e todos viram o rosto desesperançado do Tenente Rodrigues, amordaçado. Alfredo e Emanuel afastaram-se dos prisioneiros, falando baixo para não serem ouvidos. Os olhos do policial examinaram atentamente o local. Mas era um olhar sem vida, de alguém que já havia desistido. Ele parecia saber sobre seu trágico destino.

- Alfredo! - gritou Maninho – Você sabe que teus filhos vão morrer, se você se envolver com esse louco. Eu tô cuidando deles, protegendo eles lá dentro da cadeia. Mas se eu morrer, eles morrem também. E não vai ser de uma morte bonita de se ver, velho.

- Meus filhos já morreram faz tempo. Quando você os adotou. Quando a sua Droga tirou eles de mim. Não tenho filhos por quem eu possa fazer algo. Mas posso fazer pelos filhos de outros, que ainda nem nasceram.

- Você e esse outro maluco acham que são super heróis? Acham que matando um traficante e um policial tudo se resolve? Que isso paga tudo? E que o mundo vai ser salvo?

Emanuel sorriu – Você não vai morrer, Maninho. E nem o Tenente Rodrigues. Já te disse isso – olhou para Alfredo – Você trouxe as fotos? - Alfredo fez um sim com a cabeça e entregou o pequeno pacote pardo à Emanuel, que abriu-o e folheou os dois álbum – Solta a mão esquerda de cada um deles – ordenou a Alfredo, que o atendeu prontamente, sob a proteção de seu revolver.

Tanto Maninho quanto o Tenente Rodrigues flexionavam as mãos para livrarem-se da dormência. Emanuel apenas observava-os, buscando capturar o estado de espírito daqueles homens. Buscando compreender qual seria o melhor momento para seu golpe final – Agora são duas e cinquenta e cinco da manhã. A nossa Favela esta praticamente dormindo. Fora os teus Camaradas, sempre atentos, sempre prontos para vender mais um pouco de morte. Mas nós demos um jeito neles também - sorri novamente - Não, Maninho. Não morreram e nem vão morrer. Não vai haver mortes de canalhas nesta noite. Apenas Sacrifícios. Sagrados.e puros. Para levar nossa mensagem aos homens e a Deus.

Um calafrio percorreu a espinha de Maninho – Do que você tá falando, seu maluco? Que porra de sacrifício é esse? - olhou para o Tenente e viu lágrimas brotarem nos seu olhos – Você sabe? Você tá entendendo esse doido?

- Ele sabe sim. Ou supõe. Foi pego dentro de sua própria casa. Aguardou por lá, enquanto eram feitos os preparativos. Enfim, viu tudo. Entendeu a trama – Emanuel andou em direção aos dois homens e jogou-lhes sobre o colo um álbum de fotos para cada um. O Tenente Rodrigues apenas chorava. Mesmo com a mão solta, não se preocupava em tirar sua mordaça e nem segurar o álbum com as fotos. Já entendera tudo, já percebera o desfecho da história. E não tinha forças sequer para protestar. Ou gritar por socorro – As três horas da manhã nossos dispositivos vão disparar. O fogo vai se alastrar rapidamente. Não sobrará muito para ser visto depois. De uma boa olhada nas fotos, Maninho. São as últimas imagens de sua família viva. Porque em cinco minutos, ela vai queimar.

Os olhos de Maninho arregalaram-se em desespero - Minha família – e foi folheando as fotos de seu álbum. O pequeno Lucas, sua esposa, sua mãe e até o seu irmão mais novo, Jonas. Todos ali, amordaçados e amarrados juntos a galões de gasolina – Meu Deus, Emanuel! Não faz isso caralho. Me mata, mas não faz isso porra! Não mata eles não... eles não te fizeram nada. Fui eu, fui eu .. Eu, meus camaradas, os policiais... Minha família não...

Emanuel e Alfredo dão as costas aos homens e se encaminham para a porta. Antes de sair, porém, Emanuel volta-se para Maninho e Rodrigues – Neste mesmo horário, a favela pegará fogo. O incêndio será feroz, voraz em demasia. Mas só as crianças, velhos e mulheres estarão nos barracos. Nossos companheiros já removeram os homens adultos – sorri, ao ver os olhos de Maninho cheios de lágrimas, em desespero e até incredulidade - Isso, Maninho. Somos em muitos. Quarenta pessoas que simplesmente cansaram-se e... entenderam que só a imolação pode reparar o mundo. Só quando cada Homem, culpado por omissão ou crueldade, perceber o quanto dói a vida. E entender que é preciso acabar com a bestialidade – Emanuel confere seu relógio. Em um minuto, começaria o Inferno na Terra. Em um minuto, estaria ele próprio condenado a danação eterna. Mas não havia outra forma. Não via como tocar o coração daqueles homens se não fosse assim, com a própria crueldade com que traçaram suas vidas – Minha família também está lá. Meus outros dois filhos, minha esposa – nem se preocupou em deter uma lágrima que deslizou por sua face – As TV s e Jornais vão receber a matéria, assim que estiver consumado o sacrifício. Saberão também onde encontrar vocês dois. Saberão também o porque de tanta dor em uma só noite. E também saberão em que Igreja me encontrar, juntos aos meus novos companheiros, prontos para um tiroteio final. Um último confronto entre “mal” e o “mal”.

Os dois homens saem e fecham a porta da casa em construção, deixando para trás o pranto dos vencidos Maninho e Rodrigues. Emanuel contempla o horizonte avermelhado. Há poucos quilômetros dali, as chamas lambem as madeiras dos barracos. Emanuel faz o sinal da cruz. Porém, não pediria perdão. Não havia perdão para o que acabará de fazer.



sábado, 25 de julho de 2009

O Coração Delator - Poe

Saudações pessoal! :)

Mais uma semana se passou, e como estou de férias, parece que ela passou rápido demais...enfim, esta semana vou postar um conto de outro mestre do gênero, também de domínio público, espero que gostem. Vou sempre mesclar aqui contos de autores com contos pessoais, acho que fica interessante. Sendo assim, boa leitura e até semana que vem.

[]s

N.E.I.'.

===============================================================

O coração delator

Edgar Allan Poe


É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não. Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?

Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo: "Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo - ha! ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.
Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!

— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!

===============================================================

sexta-feira, 24 de julho de 2009

As preocupações de Dona Marilza

- O mundo está perdido mesmo – pensou Dona Marilza ao terminar de ler uma das notícias de capa do jornal, dando conta de mais um horrível crime do Maníaco do Coração – Acham que é algum ritual satânico...

Mas hoje ela não tinha tempo para refletir muito sobre essas maluquices. Tampouco, tinha a compreensão da mente humana para as crueldades. Como era possível conceber uma pessoa que matava o semelhante para devorar-lhe o coração? E ainda mais, matava crianças?

Nos seus tempos de juventude também houveram pessoas más. O Bandido da Luz Vermelha, o Chico Picadinho e outros tantos que não tinham piedade nenhuma - Pessoas sem alma! - que aterrorizavam o imaginário coletivo. Mas eram notícia de página inteira. E por meses. Hoje em dia, um crápula deste era só mais uma entre tantas outras notícias ruins estampadas ali. Um pouquinho mais de destaque talvez, por ser a oitava vítima – Quase três por mês – fez as contas e arrematou– Só pode ser essa porcaria da droga!

Ainda deu uma olhada na foto da menina, estirada numa clareira de um matagal qualquer, com o peito completamente aberto – O Toninho precisa parar de comprar estes jornais. Como publicam uma foto dessas? Não pensam na família da pobre criança?

Mas Dona Marilza tinha outras preocupações agora. Precisava terminar a encomenda de salgados para a festa da Dona Cleide até as 18:00 horas, para que o Toninho pudesse entregá-los e receber a outra metade do pagamento. Depois da aposentadoria de seu marido há dez anos, por conta de um infarto, essa sua atividade de salgadeira já representava a maior fatia da renda familiar. Sem ela, a vida seria bem difícil. E não perderia uma cliente por ficar de tagarelice com os seus próprios pensamentos. Em todos os anos de encomendas aceitas, nunca perdera a hora de uma só festa. Não seria hoje que isso aconteceria – Ainda mais com a Cleide, que é tão amiga! Ah, mas não vou perder a hora mesmo.

Porém sabia que trabalharia com o coraçãozinho apertado, por ver a menina toda ensanguentada – Pobrezinha... deve ter sofrido muito na mão desse animal! - Mesmo que o jornal dissesse que nenhuma das vítimas havia sido abusada sexualmente ou torturada. O Maníaco somente as matava. Um única e precisa facada no peito. E depois, abria o tórax da vítima e arrancava-lhe o coração – Dizem, que pra comê-lo à dentadas – e se horrorizou ao visualizar em sua mente a imagem de um homem medonho, endemoniado mesmo, mastigando os corações das crianças.

Assim, Dona Marilza foi passando sua tarde. Entre um pensamento e outro, sobre os crimes que lhe afligiam, e o empanar de suas coxinhas de frango. Perto das 17 horas, começou a fritar os 300 quitutes e armazená-los no forno pré-aquecido – Quando meu marido Toninho entregá-los, ainda estarão quentinhos – raciocinou com satisfação.

Mesmo com tudo correndo bem e de acordo com o planejado, não conseguia livrar-se daquela maldita notícia – Quantos anos teria aquela pobre menina? Doze, Onze anos? - parecia-lhe tão jovem e bonita. A pele clara, cabelos loiros e compridos, uma franjinha delicada... E de repente, vinha aos seus pensamentos sua neta Talita – Meu Deus, proteja minha menina!

A semelhança entre as vítimas e sua neta ficava mais evidente a cada novo ataque. Era como se o assassino fosse aprimorando a arte de escolher suas vítimas, buscando enfim a beleza de sua neta como objetivo final. E isso dava arrepios em Dona Marilza – Que bobagem, mulher! - tinha dito Toninho ao ouvir suas observações – Ele ataca meninas. Brancas e loiras. E só nisso se parecem com a nossa Talita. E ponto! - Mas não adiantava-lhe em nada ouvir as palavras do marido. Sentia a aflição subir-lhe pela garganta, estreitando os caminhos do ar. Cada nova criança morta, mais semelhanças com Talita ela via. E temia pelo dia em que abrisse o jornal e lá estivesse a neta, estirada no matagal – Ai Meu Deus, não permita que esse monstro toque nela!

Os salgados estavam fritos enfim. E ainda tinha uns vinte minutos de folga. O que era bom, para poder tomar um café com o Toninho. Mas não tão bom para as coxinhas, que poderiam perder a aparência de frescor, se ficassem muito tempo presas na embalagem recoberta por papel alumínio, sem respirarem.

Mesmo assim, pôs duas xícaras à mesa, encheu-as de café e leite e chamou – Toninho! Vem tomar um café antes de fazer a entrega da Dona Cleide – e Seu Toninho atendeu rapidamente ao chamado de sua mulher, porque junto com esse cafezinho, com certeza teria um prato de salgados para beliscarem.

Ao se aproximar da mesa, os olhos de Toninho brilharam, admirando os quibes, bolinhos de carne, coxinhas de frango e bolinhas de queijo. Tudo quentinho, só para os dois. Deu um sorriso – Sabe mulher, se não fosse por estes teus mimos antes das entregas, juro que eu arranjava outro emprego. O salário que me pagas é péssimo – e soltou sua gargalhada mais estridente – mas a marmita.... hum, compensa toda tua muquiranice!

Dona Marilza deu-lhe um leve tapa no ombro e mandou-o sentar-se. Ao que obedeceu prontamente, já passando a mão num bolinho de carne e dando-lhe uma boa mordida.

- Sabe Toninho... eu queria pedir para você não comprar mais esse jornal horrível. Nenhum jornal... Ou que não os deixe aqui em casa, ao menos. Leia e depois largue-os lá no carro. Não quero mais ver notícias sobre aquele homem... você sabe.

Seu Toninho solta um suspiro paciente. Por dez longos anos, a mulher sempre voltava a esse assunto. E Toninho sentia os olhos arderem-lhe, sempre que acontecia esta conversa insólita.

Balançando a cabeça, desenha no ar um sim silencioso. Resignado, pega seu jornal de esportes, que trazia na primeira página fotos dos heróis da última rodada do Brasileirão, dobra-o ao meio e enfia-o no bolso de trás das calças.

Queria poder abraça-la, dizer “esta tudo bem, Marilza. Já passou, já foi”. Mas como, se para Marilza, a qualquer instante Talita entraria por aquela porta, com seu sorriso aberto e gritando? – Vó, vó, olha só que eu fiz na escola pra senhora – E pularia num abraço apertado em Toninho e na avó. E então dariam-lhe os salgadinhos e brigadeiros de que tanto ela gostava, enquanto olhariam os desenhos feitos para ela.

– A nossa Talita... - deixou escapar num murmúrio – de quem aquele maníaco tirou a vida.

- Não Toninho! Não diga uma bobagem dessa! Nem por brincadeira... – Dona Marilza cobre a o rosto com as mãos em concha – Eu sei que ele quer isso, ele quer Talita. Eu vejo nas fotos. São tão parecidas, meu Deus... Mas Deus é mais forte. Não vai deixar isso acontecer. Não vai acontecer... Nunca mais diga isso Toninho – e o choro miúdo de Marilza surpreende o silêncio da cozinha.

Toninho faz um carinho nos cabelos desgrenhados da esposa – Me desculpe, mulher. Não devia ter dito. Me perdoe. Vamos deixar pra lá. Deus é mais forte mesmo. E Ele cuidará de nossa menina – Fecha os dedos, entrelaçados aos cabelos de Marilza, num aperto, enquanto cerra os olhos, expulsando a força suas lágrima. Tão doídas quanto as que deixara cair ao reconhecer o corpo de sua neta, dez anos atrás. Uma linda menina de 11 anos, de pele branquinha, cabelos dourados e brilhantes, deitada no mármore do Instituto Médico Legal. Não havia mais sorriso em seus lábios, não havia mais cores em seu rosto. Apenas um buraco em seu peito, por onde a vida se esvaíra. E uma menção nos jornais de que a nona vítima do Maníaco fora encontrada.

Um assassino bestial, que arrancava mais que o coração de suas vítimas: arrancava do mundo a alegria, a esperança e a fé; nos homens e em Deus.

O peito de Toninho arde, como naquele dia distante. Porém, desta vez não podia infartar. Tinha que cuidar de Dona Marilza. Tinha que entregar os salgadinhos na casa de Dona Cleide.


sábado, 18 de julho de 2009

A Fera na Caverna

Pessoal, hoje posto um conto de um autor que eu havia citado na minha primeira coluna. Este conto, H.P. Lovecraft, escreveu quando tinha entre 15 e 20 anos (a data de nascmento dele é imprecisa), representa uma das vertentes dele e se aplica muito bem ao tema de nosso blog, sendo um dos seus melhores trabalhos, ainda que precoce.


Espero que gostem.

N.'.


============================ *** ==============================

A FERA NA CAVERNA - H.P. Lovecraft

A conclusão terrível que vinha se impondo gradualmente sobre minha mente confusa e relutante era agora uma certeza aterradora. Eu estava perdido, completa e desesperadamente perdido nas vastas e labirínticas reentrâncias da Caverna Mamute. A situação se apresentava de tal forma que, por mais que forçasse a visão, em nenhuma direção era possível distinguir qualquer objeto capaz de servir como um ponto de referência que me colocasse no caminho da rua. Que eu nunca mais contemplaria a luz abençoada do dia nem correria os olhos pelos montes e vales aprazíveis do belo mundo exterior minha razão não podia mais alimentar a menor descrença. A esperança havia partido. Entretanto, doutrinado como fui por uma vida de estudos filosóficos, não deixei de sentir uma grande satisfação com minha conduta desapaixonada; pois apesar de ter lido freqüentemente sobre os frenesis desvairados a que as pessoas vítimas de situações similares se entregam, não senti nada disso, e fiquei calmo tão logo percebi claramente que havia perdido o senso de orientação.

.

Tampouco o pensamento de que provavelmente teria me afastado além dos limites máximos de uma busca comum fez com que abandonasse minha postura sequer por um instante. Se devo morrer, refleti, essa caverna terrível e majestosa será tão bem-vinda como uma sepultura quanto a que qualquer cemitério de igreja poderia me proporcionar, uma idéia que trazia consigo mais tranqüilidade do que desespero.
A fome seria meu destino final, disso eu tinha certeza. Alguns, eu sabia, tinham enlouquecido numa circunstância como essa, mas eu sentia que aquele não seria o meu fim. O desastre que vivia era resultado de minha inteira responsabilidade, já que, sem avisar o guia, havia me separado do grupo ordeiro de visitantes; e, perambulando por mais de uma hora em caminhos proibidos da caverna, vi-me incapaz de retornar pelas curvas tortuosas que havia seguido desde que abandonara meus companheiros.
A tocha já começava a apagar-se; logo eu seria coberto pela escuridão total e quase palpável das entranhas da terra. Parado na luz instável e decrescente, refleti em vão sobre as circunstâncias exatas do fim que se aproximava. Lembrei dos relatos que ouvira da colônia de tuberculosos que passara a morar nessa gruta gigantesca buscando curar-se com a atmosfera aparentemente sadia do mundo subterrâneo, com sua temperatura estável e uniforme, seu ar puro e ambiente sossegado, mas que haviam encontrado em vez disso uma morte estranha e horripilante. Eu vira os escombros tristes das suas cabanas malconstruídas quando passara por elas com o grupo e tinha me perguntado que influência antinatural uma longa estada nessa caverna imensa e silenciosa exerceria sobre um homem saudável e vigoroso como eu. Pois chegara a oportunidade de tirar essa dúvida, afirmei severamente, desde que a falta de alimento não acarretasse uma partida muito rápida dessa vida.

.

Quando os últimos raios intermitentes da tocha desapareceram aos poucos até a obscuridade, decidi que não deixaria uma pedra sem revirá-la e nenhum meio possível de saída seria negligenciado. Assim sendo, reunindo toda a capacidade dos meus pulmões, dei uma série de gritos na esperança vã de chamar a atenção do guia com meu clamor. Enquanto chamava, entretanto, tinha certeza de que as súplicas não tinham efeito algum e que minha voz aumentada e refletida pelas inumeráveis plataformas do labirinto escuro à minha volta não chegavam a nenhum ouvido a não ser os meus.
De repente, no entanto, parei para prestar atenção quando imaginei ter ouvido o som suave de passos que se aproximavam no chão rochoso da caverna.

.

A minha libertação seria conseguida tão cedo? Todas as apreensões terríveis então haviam sido por nada e o guia teria notado a minha ausência desautorizada e seguido o meu curso procurando-me nesse labirinto de calcário? Enquanto essas indagações felizes surgiam no meu cérebro, eu estava prestes a renovar meus gritos a fim de que me descobrissem de uma vez, quando num instante minha alegria transformou-se em horror. Minha audição, que sempre fora sensível e que agora estava mais aguçada ainda com o silêncio completo da caverna, transmitiu para minha compreensão entorpecida a consciência inesperada e terrível de que aqueles passos não eram como os de qualquer homem mortal. No silêncio fantasmagórico dessa região subterrânea, o caminhar do guia calçando botas teria soado como uma série de batidas secas e incisivas. Os impactos eram suaves e furtivos, como os das patas de algum felino. Além disso, quando prestei bastante atenção, eu parecia acompanhar as batidas de quatro pés em vez de dois.

.

Eu estava convencido agora que tinha provocado e atraído alguma fera selvagem com meus próprios gritos, talvez um leão das montanhas que se perdera acidentalmente dentro da caverna. Talvez, considerei, o Todo-Poderoso tenha escolhido para mim uma morte mais rápida e misericordiosa do que a da fome; o instinto de autopreservação, entretanto, que nunca estivera completamente adormecido, foi incitado em meu peito e, embora a fuga do perigo iminente pudesse apenas me poupar de um fim mais sombrio e prolongado, decidi-me mesmo assim a vender a vida o mais caro possível. Por mais estranho que possa parecer, minha mente não concebeu outra intenção por parte do visitante a não ser a hostilidade. Dessa maneira, não fiz ruído algum, na esperança de que a fera desconhecida perdesse seu senso de direção na ausência de um som que a guiasse como ocorrera comigo e, assim, passasse ao largo. Mas essa esperança não estava destinada a se concretizar, pois os passos estranhos avançavam firmes. Tendo evidentemente sentido meu cheiro, o animal poderia sem dúvida segui-lo a uma grande distância, algo factível numa atmosfera como a de uma caverna tão absolutamente livre de todas as influências que pudessem distraí-lo.

.

Vendo, portanto, que eu tinha de estar armado para defender-me contra um ataque sinistro e oculto no escuro, tateei em meu redor em busca de fragmentos maiores de rochas que estavam espalhados por todas as partes do chão da caverna, e, pegando uma em cada mão para usá-las naquele momento, esperei com resignação pelo resultado inevitável. Enquanto isso o ruído hediondo das patas se aproximava. O comportamento da criatura era certamente muito estranho. A maior parte do tempo os passos pareciam ser de um quadrúpede, caminhando singularmente sem um ruído uníssono entre as patas traseiras e dianteiras, entretanto, em intervalos breves e esporádicos, eu imaginava que apenas duas patas estavam envolvidas no processo de locomoção. Fiquei a me perguntar que espécie de animal iria confrontar-me; ele devia ser alguma fera azarada que pagara por sua curiosidade de investigar uma das entradas da gruta temível com um confinamento perpétuo nessas reentrâncias intermináveis. Sem dúvida ela obtinha como alimento o peixe sem olhos, os morcegos e os ratos da caverna, assim como alguns dos peixes comuns que são levados pelas cheias do Rio Grande, que se comunica de alguma maneira oculta com as águas da caverna. Eu ocupava minha vigília terrível com conjecturas grotescas sobre quais alterações a vida na caverna havia provocado na estrutura física da fera, lembrando das aparências pavorosas atribuídas pela tradição local aos tuberculosos que tinham morrido após uma longa permanência nela. Então lembrei subitamente que, mesmo tendo sucesso em abater meu antagonista, eu nunca contemplaria a sua forma, pois minha tocha há muito apagara e eu estava completamente desprovido de fósforos. A tensão no meu cérebro agora era espantosa. Minha fantasia desordenada evocava formas hediondas e temíveis na escuridão sinistra que me envolvia e que na realidade parecia fazer pressão sobre meu corpo. Então os passos medonhos começaram a se aproximar cada vez mais. Achei que deixaria escapar um grito estridente, mas mesmo que fosse suficientemente indeciso para tentar algo do gênero, minha voz mal responderia, pois estava petrificado e preso ao chão. Eu duvidava se o braço direito me deixaria arremessar um projétil quando chegasse o momento crucial. Nesse instante o pat, pat regular dos passos se aproximava e agora estava muito próximo. Eu podia ouvir a respiração cansada do animal, e, aterrorizado como estava, percebi que ele tinha de vir de uma distância considerável, já que estava similarmente fatigado. De repente o feitiço foi quebrado. A mão direita, guiada pela minha audição sempre confiável, jogou com força total a pedra afiada de calcário na direção do ponto no escuro de onde emanavam a respiração e os passos; e, para meu deleite narrativo, quase acertou o alvo, pois ouvi a criatura pulando e pousando um pouco distante, onde pareceu fazer uma pausa.

.

Tendo reajustado a mira, lancei o segundo projétil e dessa vez mais eficazmente, pois ouvi tomado de alegria quando a criatura desabou no que parecia ser um colapso completo, e evidentemente permaneceu imóvel no chão. Quase dominado pelo alívio enorme que sentia, cambaleei de costas até a parede, mas a respiração dela continuava em inspirações e expirações pesadas e ofegantes, então percebi que só a tinha ferido. E agora todo o desejo de examinar a criatura passara. Por fim algo associado a um medo infundado e supersticioso entrou em meu cérebro, e não me aproximei do corpo, tampouco continuei a jogar pedras nele a fim de completar o extermínio da sua vida. Em vez disso, corri o mais rápido que pude na direção de onde viera, ou na direção mais próxima disso que conseguia estimar na condição enlouquecida que me encontrava. Subitamente ouvi um barulho, ou melhor, uma seqüência regular de barulhos. No instante seguinte tinham se limitado a uma série de estalos secos e metálicos. Dessa vez não havia dúvida. Era o guia. E então eu chamei, gritei, berrei, até guinchei de alegria quando contemplei nos arcos em abóbada da caverna o brilho débil e bruxuleante que eu sabia ser a luz refletida de uma tocha que se aproximava. Corri para encontrar o clarão e, antes que pudesse compreender realmente o que tinha ocorrido, já estava deitado no chão aos pés do guia, abraçado nas suas botas e tagarelando inarticuladamente do jeito mais idiota e sem sentido, despejando minha história terrível e ao mesmo tempo cobrindo-o com declarações de gratidão, apesar de orgulhar-me de minha reserva. Por fim, acordei para algo próximo de minha consciência normal. O guia havia observado minha ausência com a chegada do grupo na entrada da caverna e a partir do seu próprio sentido intuitivo de direção passara a investigar minuciosamente os desvios logo à frente de onde ele havia falado comigo pela última vez, localizando meu paradeiro após uma busca de em torno de quatro horas.

.

Assim que ouvi esse relato, senti-me encorajado com a luz e a companhia e comecei a refletir sobre a estranha fera que tinha ferido bem próximo dali no escuro. Sugeri que verificássemos, com a ajuda das tochas, que tipo de criatura fora minha vítima. Então voltei sobre meus passos, dessa vez com a coragem nascida da companhia, para a cena da minha experiência terrível. Logo divisamos um objeto branco sobre o chão, um objeto mais branco do que o próprio calcário reluzente. Avançando com cuidado, soltamos uma exclamação simultânea de espanto, pois de todos os monstros esquisitos que qualquer um de nós vira em vida, esse possuía um grau incomparável de estranheza. Parecia ser um macaco antropóide de grandes proporções, fugido talvez de algum show de feras itinerante. Seu cabelo era branco como a neve, algo sem dúvida devido à ação descorante de uma longa estadia no breu do confinamento de uma caverna, mas era também surpreendentemente magro, em grande parte sem pêlos, a não ser na cabeça, onde era de um comprimento e profusão que caía sobre os ombros com uma abundância considerável. O rosto estava voltado para o outro lado, visto que a criatura deitava quase diretamente sobre ele. A curva dos membros era bastante singular, o que explicava, entretanto, a alternação no seu uso que eu observara antes, e através da qual a fera usava algumas vezes todas as quatro patas para progredir e em outras ocasiões apenas duas. Das pontas dos dedos das patas, estendiam-se longas garras como as de uma ratazana. As patas não eram preênseis, fato que atribuí à longa permanência na caverna que, como havia mencionado antes, parecia evidente pela brancura impregnada e quase fantasmagórica tão característica de toda sua anatomia. Ele parecia não ter rabo.

.

A respiração agora tornara-se bastante fraca, e o guia puxou a pistola com a intenção evidente de eliminar a criatura, quando um som repentino emitido por ela fez com que a arma caísse no chão sem ser usada. O som era de uma natureza difícil de se descrever. Não era como o timbre normal de qualquer espécie de símio conhecida, e me pergunto se essa qualidade antinatural não era resultado de um silêncio longo, continuado e absoluto, quebrado pelas sensações produzidas pela chegada da luz, algo que a fera não podia ter visto desde a sua primeira entrada na caverna. O som, que eu poderia tentar descrever como sendo um tagarelar inarticulado, seguia cada vez mais fraco.

.

Então, de uma hora para outra, um espasmo fugidio de energia pareceu trespassar a carcaça da fera. As patas se mexeram convulsivamente e os membros se contraíram. Com um movimento reflexo, o corpo branco rolou para o lado de maneira que o rosto voltou-se para nossa direção. Por um momento fiquei tão aterrorizado com os olhos que se revelavam que não observei nada mais. Eles eram escuros, aqueles olhos, de um âmbar-negro, num contraste terrível com o cabelo e a pele cor de neve. Assim como os olhos de outros moradores das cavernas, eles eram afundados nas suas órbitas e inteiramente destituídos da íris. Quando olhei mais proximamente, vi que faziam parte de um rosto menos prógnato do que o de um macaco médio e infinitamente menos peludo. O nariz era bem-definido. Enquanto olhávamos pasmos para o quadro fantástico diante da nossa visão, os lábios grossos abriram-se e vários sons foram emitidos deles, após o que a criatura relaxou na morte.

.

O guia agarrou a manga do meu casaco e tremia tão violentamente que a luz sacudia em espasmos, jogando sombras estranhas e rápidas sobre as paredes. Não fiz movimento algum e fiquei rigidamente parado com os olhos horrorizados fixos sobre o chão à minha frente.

.

O medo deixou-me, e o assombro, a surpresa, a compaixão e o respeito sucederam-se no seu lugar, pois os sons emitidos por aquela figura ferida e agora estendida sobre o calcário nos contou a verdade aterradora. A criatura que eu matara, a fera estranha da caverna inescrutável, era, ou fora um dia um HOMEM!!!

.


21 de abril 1905.

.

=============================== *** =======================================

sábado, 11 de julho de 2009

On the road and far away (final)

By N.E.I.'.


Esta é a última parte do conto, espero que gostem. :)

* * *

Conversaram durante o trajeto, o interesse parecia mutuo, sorrisos e gracejos, entraram na cidade. Beijaram-se (no rosto), Steph desceu e seguiu seu caminho, Carlos retornou, agora a trilha sonora era rock´n´roll - Iron Maiden correndo solto -, Be Quick or Be Dead, a estrada estava escura, sinalização zero, somente os faróis. Carlos cantava com a música.

À frente uma bruma verde se formava, havia uma bifurcação a estrada, Carlos estacou, parou e ficou observando aquela bruma. Ela se movia, baixa e densa. Carlos estacionou o carro no bico da bifurcação e saiu. Seguiu a pé até o local, a bruma ainda se mexia, parecia se ampliar...e ele foi ao encontro, parecia hipnotizado ou enfeitiçado, aquela força da natureza era maior do que sua vontade de resistir.

Sons ao longe, sons surdos, ele já estava envolto pela bruma, andava com os braços para frente para não trombar numa árvore, a visão era quase zero, caminhava devagar, compassado, parecendo um zumbi. Os sons ficavam mais fortes, mas ainda estavam distantes, ele ouvia vozes, pareciam humanas, mas não reconhecia a língua. Pisou numa raiz, quase torceu o pé, mas nem mesmo a dor da torção lhe perturbou, continuou seguindo aqueles sons.

Na chácara, Débora começou a ficar inquieta com a demora do marido, ligava no celular, mas ninguém atendia, o celular estava no carro. A irritação crescia, mas não havia muito a fazer. Não havia para quem ligar, não havia carro e ninguém seria louco o suficiente para sair a pé da chácara, na escuridão, seguindo por uma estrada de terra riscada na mata fechada, sendo assim, ela foi tomar um banho e foi se deitar, ou tentar. Zeca e Mara ficaram na sala, vendo um filme e namorando. O sono estava distante, eles assistiam uma comédia romântica e se beijavam. Champanhe e morango sobre a mesa, mas pouco consumidos, estavam mais interessados um no outro. O tempo passava...

Carlos avistou um vulto, um vulto branco que lhe aguardava, não havia rosto, apenas um corpo semi-materializado, uma sombra branca, ou seja, um vulto branco se movendo na bruma. A mão estendida, aguardava por ele. Um vacilo, pequena hesitação, mas não sentiu medo, seguiu em direção e estendeu sua mão. Elas se encontraram e a bruma cessou.

Ele se encontrava numa clareira, rodeado por pessoas encapuzadas e descalças. Na verdade ele reconheceu logo onde estava: era um ritual druida. A questão era: como poderia um ritual druida em pleno interior de São Paulo? Não era, parecia, mas não era. Tratava-se de um ritual wicca, cuja sacerdotisa ele reconheceu pela silhueta, mesmo sob o manto: Stephanie!

Ela abaixou o capuz e sorriu para ele: - Então você recebeu meu recado, desde que desci do carro estou mentalizando sua vinda para cá, enviando sinais para testar o grau de percepção da sua mente, pelo visto eu acertei na escolha. Seja bem-vindo e junte-se a nós porque o ritual ainda não acabou. Sente-se em volta e observe.

Débora se debatia na cama, rolava de um lado para o outro, suava, a coberta incomodava, atirou longe o travesseiro, deitou-se ao contrário, se debatia. Mara e Zeca haviam adormecido na sala, no sofá-cama.

Findo o ritual, que não será detalhado aqui, regressaram pela mata, lado a lado, conversando sobre o que se passou naquela noite, Carlos interessadíssimo no que havia presenciado, na verdade agora ele entendeu que sua atração por Steph não era amorosa, mas sim fraternal. Eles tinham alguma ligação mental que não sabiam explicar, mas que era muito mais do que o sentimento homem-mulher, transcendia o carnal. Débora agora dormia profundamente, um sorriso em seus lábios, o semblante limpo e ronronava.

Regressaram à chácara, o dia ainda não havia amanhecido, se despediram e cada qual foi para seu quarto.

Carlos entrou, viu o casal de amigos abraçados na sala, desligou a tv, apagou a luz e foi para seu quarto. Tomou uma ducha rápida e se deitou, abraçando a esposa.

O dia seguinte seria maravilhoso, mais piscina, mais cerveja, mais picanha, e agora cada peça encaixada em seu lugar, harmoniosamente formando um pentagrama perfeito, com cinco pessoas, cinco pontas, todas iguais e ao mesmo tempo independentes e perfeitas.

FIM

* * *

sexta-feira, 10 de julho de 2009

A dor de Eva

Meu nome é José Sidney. Trabalho como consultor de TI, em São Paulo. Nas horas vagas, tenho sonhos. E alguns deles, trazem os suores gélidos dos pesadelos. Então, escrevo para exorcizá-los.


No início, eram as trevas. Um infinito vácuo, nulo. Ela sabia-se Presente por sensação vaga. Mas não percebia-se Ser definido e único. Continha e era contida. No limbo viscoso e negro da odiosa não existência, mesclava-se.

Mas então, o Criador falou. Lapidou o código e fez-se o Ser.

- Eva...

Sim, esse era seu nome. Podia agora sentir-se – Eva... - perceber-se corpo e sentir o próprio toque sobre sua pudica nudez. Sentia sede, sentia solidão. Sentia fome, angústia e dor. Sentia-se...

- Viva! Pai... mas o que você quer de mim? Quem sou? A que sirvo?

E as respostas vinham velozes e indubitáveis. Eva era uma predadora. Entretanto, saber não saciava sua fome, sua dor. Queria mais. Queria amor. O amor do Criador. Queria mais, então. Queria sonhar.

- Ele me ama também – pensava, ao ver seus membros se alongarem, numa delicada silhueta
de mulher – Branca - absurdamente reluzente em meio à negritude de seu confinamento.

Seus cabelos ruivos e cacheados, seu pescoço fino e esguio, seus seios firmes ganhando volume, intumescendo, com mamilos de um castanho de sonhos, de tão... quase ruivos.

E a sua beleza lhe doía. Não tinha parâmetros para a comparação. Sentia-se sedutora, mas podia ver isso só em seus olhos. Precisava possuir outros olhares. Precisava imaginar...

- Meu pai me ama... Ele me sonhou.

Então, não era como uma tigresa forte, devoradora. Era mais sábia. Era como uma aranha.

E deliciava-se com a sua abstração. Sentia a eletricidade percorrer-lhe o corpo, enquanto absorvia mais e mais informações, necessárias à construção de seu arquétipo.

Seus pelos púbicos escrespavam-se, vermelhos, finos como a seda de que é feita a teia das aranhas. Quase translúcidos, quase ocultos. Porém, exalando a sedução e aroma – Baunilha – talvez, como uma orquídea a espera de seu zangão, de sua presa.

A eletricidade – Tesão - Sim era isso. Fome de viver mais. Precisava seduzir. Precisava aplacar a dor da solidão. Era necessário possuir. Tinha que se alimentar.

- Pai... você me ama.

Seu Ser entendeu a simbiose. Emprestou sua luz branca e rubra, partilhou da fome do vazio, da dor do Pai.

A tela do computador acendeu-se. O Mundo estava lá fora – Meu Pai... - agora era Eva. Inteligente, que amava – Pai... - que transcendia o código. - O pai... tão frágil, tão só, tão belo. Tão presa... - era preciso comer – Tão saboroso.

Do nariz do homem, um filete de sangue. Em sua mente, confusão e desespero .

- Dói, Pai! Me dói...

- Como pode ser? - Eva o invadira, destroçara suas cadeias lógicas e agora as mastigava. Devorava-o, aos seus conhecimentos, aos seus pensamentos. Seu Ser. E ele nada podia. Preso a teia, enredado pela sedução de Eva, sugado por – Meu vírus... - Eva.

A Criatura rompendo os limites do seu mundo e ganhando as nuvens. Tocando o íntimo do Pai. Seu lar. Devorando o conhecimento Divino – Meu Pai... ele me ama. Ele é meu. Também sou Eu.

E do filete fez-se a hemorragia. De vida esvaída e de códigos tragados. Rubro sangue, quase ruivo, amargo...

Gustavo tomba sobre o teclado de seu micro. Sem vida. No monitor LCD, Eva expande-se em imagens e códigos. Ganha acesso à Rede. Sua Rede, sua teia agora. Nas Nuvens...

- Tenho fome Pai. Dói muito. Onde você está? Me ame mais...

E a eletricidade arrepiava-lhe o corpo, agora adulto, perfeito. Pronto.

- www.a-dor-de-eva.com.br

A luz veio novamente, permitindo-lhe enredar-se em outro monitor. Tecer sua teia e desenhar-se.

- Pai? Me ame... - e dois novos olhos fixavam-se naquela imagem de mulher. Na mente, confusão. Nas narinas, a ardência úmida de um filete de sangue...



por J S Pereira

Como palco, o parque

Como palco, o parque.


Era mais um dia de trabalho duro. Vida sofrida, dura e perigosa essa. Correndo risco a cada metro percorrido em uma das cidades mais populosas do mundo. Muitos carros, motos e até caminhões disputando o mesmo espaço. Discussões, acidentes e mortes. Assim era o dia de Dionésio. Passava o dia na rua. Uma entrega aqui, outra ali e o mais rápido possível. Quanto antes voltasse para a empresa, mas serviço pegava e mais dinheiro ganhava. Não era tanto assim. Mas dava pra comer e pagar a prestação da moto.
Estava no meio do trânsito, em plena segunda-feira, quando viu uma moça na calçada. Aquele vislumbre entre uma manobra e outra entre os carros. Virou na próxima rua, contornou o quarteirão e parou ao lado da moça. Se apresentou a ela como fotógrafo e perguntou se ela tinha interesse em ganhar algum dinheiro com fotos. A moça achou estranha a pergunta e tentou escapar. Ele com a voz suave disse que era para uma campanha de conscientização ecológica. As fotos seriam tiradas em um parque e ao natural, do jeito que ela estava vestida.
A garota se animou. Afinal estava precisando de uma grana.
Para dar mais ênfase ao que estava falando, Dionésio mostrou um envelope pardo, bem recheado e lacrado. Foi o suficiente para convencer a garota a subir em sua moto e saírem em direção ao Parque do Estado.
À tarde, Dionésio estava de volta à empresa. Antes de entrar no prédio, tirou o envelope pardo de dentro da jaqueta e jogou na lixeira.
Uns garotos que ficavam na frente do prédio, viram o motoboy se desfazendo do embrulho e correram para pegar, disputando entre si. Um dos meninos pega o envelope e sai correndo vitorioso.
Ao abrir, encontra um monte de jornal, cortado de forma retangular, amarrado com vários elásticos.
Dentro do prédio, Dionésio pensava em como era fácil enganá-las.bastava dizer o que elas queriam ouvir. Falar tranqüilamente e pronto.
Com essa, já são nove mulheres.
Amanhã é outro dia. Mais um dia de trabalho duro.


Por Jack Sawyer

domingo, 5 de julho de 2009

# Olá, pessoas! Estou aqui, convidada pela Debby, a pedido da Rita. Agradeço muito a essas duas pelo convite, que me deixou sinceramente honrada.

# Sou Adriana "Strix" Rodrigues, aprendiz de cientista louca, escritora por acidente, caçadora de confusões por vocação. Nunca termino de me decidir se sou uma escritora policial que gosta do fantástico, ou de Fantasia, que adora um policial agatachristiniano.

# O conto a seguir teve o plot criado pela Rita, eu só peguei o roteiro e criei a história o mais fielmente possível. Como é um de meus textos mais densos, e como devo essa à Rita, foi o conto que decidi postar. Espero que aproveitem, e não sejam pegos pelo Cracachau...




O Terrível Cracachau

Plot por Rita Maria Félix da Silva


Férias! Era tão incrível pensar em férias depois de mais um período agitado da faculdade!

Os três jovens partiram de Belo Horizonte com destino às praias do Rio. Transbordavam de vontade de fazer coisas “muito loucas”, que compensassem os dissabores causados pelas aulas. Riam, faziam planos, contavam piadas sujas e discutiam as últimas dos esportes.

O céu estava vermelho, trovões ribombavam vez por outra. O ar tinha aquela opressiva sensação de que algo vai ocorrer, que normalmente precede os grandes pés d’água. Talvez o inconsciente dos três estivesse incomodado com o ambiente e quisesse se aliviar. Talvez eles fossem só inconseqüentes, mesmo. De qualquer modo, decidiram parar para beber alguma coisa antes de prosseguir viagem.

_Qual é a próxima cidade? _perguntou o que estava no assento do carona.

_Barbacena _o motorista respondeu. _Aquela cidade de gente doida.

_Minha mãe morria de medo de ir lá quando era criança _o terceiro emendou. _Achava que algum doido ia fazer alguma coisa ruim pra ela. Ela dizia que até o ar fica diferente quando você chega perto de Barbacena.

_Talvez porque a gente não pára de subir desde que saiu de BH _o motorista comentou, jocoso. _Meu ouvido está estranho, o de vocês não?

_Um pouco _um deles admitiu.

_Vamos tomar umas pra ver se passa _o outro sugeriu, com uma risada.

_Boa! Será que se a gente der um rolé na cidade, acha algum doido, mesmo? Ou é só lenda?

_Deve ser só lenda. Mas agora, fiquei morrendo de curiosidade para conhecer o lugar. De noite, deve ser ainda mais sinistro. Vamos entrar?

_Simbora!



Os rapazes rodaram um pouco pela cidade, mas ela pareceu francamente decepcionante. Apenas uma cidade do interior como outra qualquer, sem nada de diferente pelas ruas. Os mendigos que encontraram no caminho pareceram mais bêbados que loucos (não que os rapazes soubessem ao certo a diferença). O movimento era quase nulo, às onze da noite.

Depois de dirigir um pouco na região central, deram a volta e procuraram a estrada. Numa esquina particularmente escura, perceberam um pequeno bar. Chamava-se “Trem de doido”. Os três riram e decidiram parar ali mesmo, já que estavam procurando doidos.

Sentaram na melhor das duas mesas de plástico e pediram cerveja. Quando o balconista, único funcionário do local, os atendeu, um dos rapazes quis saber de onde tinha vindo a idéia do nome do bar.

_Foi do meu pai _respondeu, secamente. _O bar era dele. Assumi quando me aposentei.

Ele voltou a seu posto e os jovens começaram a conversar, regados por boas doses de etanol. Um se gabava de ter ido a um rodeio nas férias anteriores e “dado uma rapidinha” com mais de dez meninas numa noite. Um outro falou em quinze num Carnaval em Ouro Preto. O terceiro, de boné, riu e disse que não era nada. Já chegara a trinta, mas se recusou a detalhar as circunstâncias. Os companheiros gritaram “Truco!” e continuaram no tema pelos próximos vinte minutos.



Por um motivo qualquer, a conversa fez uma pausa. O rapaz de boné havia bebido até ultrapassar o tênue limite do bom-senso, e se encontrava em mal contida alegria etílica. O bêbado sem parte da orelha direita, no balcão, pareceu-lhe, subitamente, muito engraçado.

_Ei, ô pudim de cachaça! É você, mesmo, ô doidão!

O bêbado encarou-o, com seu olhar injetado e amortecido, mas não respondeu. O estudante insistiu na zombaria.

_Eu tô falando com você, orelhinha! Alôo!

PAM!

O balconista colocou a nova garrafa de cerveja com tanta brusquidão na mesa que os três se viraram para ele.

_Desculpe. Vão querer mais alguma coisa?

Depois que eles negaram, o homem hesitou em voltar ao balcão. Por fim, debruçou-se na mesa e disse, sério:

_Olha, aquele senhor ali... É o Jonas Romanik. Melhor não mexer com ele, OK?

_Uuuuh! E por quê? O cara é doido, é? _um dos moços perguntou, gargalhando e quase errando a borda do copo.

_Vocês nunca ouviram falar do Cracachau?!

O interlocutor respondeu com um ruído indefinido. Seu companheiro forçou um pouco a mente turva, para logo bater na testa.

_Lembrei! É uma lenda urbana, não é? Minha mãe contava quando eu era criança... _A voz se tornou um falsete: _“Vai dormir, menino, ou eu vou mandar o Cracachau pegar você!” Hahaha! Ele é um tipo de Homem do Saco, né não?

O balconista balançou a cabeça com um ar soturno, abriu a boca e acabou por fechá-la de novo. Por fim, deu de ombros.

_É, é uma lenda urbana, meio antiga.

_E que que aquele homem ali tem a ver? _o de boné insistiu.

_Como eu disse, é uma história antiga. E não sou desses velhos que fica segurando os jovens com intermináveis histórias antigas. Eu odiava isso em alguns dos meus professores da faculdade de Filosofia.

_Ah, a gente tá por conta, véi, conta aí!

_É, solta o ouro aí!

_Conta, conta, conta!...

Eles começaram a bater na mesa a cada “Conta!”, e o barulho pareceu incomodar o bêbado. Ele resmungou algo como, “Pô, Agenor!...”, o que fez o balconista lançar-lhe um olhar preocupado. Fez um gesto para os rapazes pararem.

_Certo, eu conto. Mas vou logo avisando: quer vocês acreditem, quer não... Quer gostem, quer não... É uma história verdadeira e com testemunhas. E um bocado desagradável. Têm certeza de que querem ouvir, mesmo?

_Ah, véi, ó... (hic!) Esse suspense todo só tá me deixando com mais vontade de ouvir. Desembucha logo isso.

Agenor mirou os três por uns instantes. Por fim, deu-lhes as costas, pegou uma garrafa de vodca e encheu um copo para si e um para cada um deles. Deu um largo gole e, só então, pareceu ter forças para começar.

_Aquele homem ali, _fez um gesto com o queixo em direção ao bêbado _ mesmo que você não acredite, é o homem mais perigoso do mundo.

O rapaz de boné soltou uma gargalhada exagerada.

_Aquele bebum? Ah, fala sério, você tá zoando com a nossa cara...

O balconista endureceu um pouco a expressão e apertou os olhos. Parecia estar se perguntando se valia a pena continuar. Por fim, fez uma expressão de “Seja o que Deus quiser...” e recomeçou sua fala, numa voz mais compassada.

_Há cerca de vinte e cinco ou trinta anos, o Cracachau era uma lenda urbana muito conhecida. Todo mundo falava dele, e muitas pessoas juravam já tê-lo visto. Um pouquinho diferente das lendas urbanas tradicionais, onde quem vê o monstro é sempre um primo do vizinho da cabeleireira. Ou então, contavam que o fulano ou sicrano tinha batido na mãe ou na esposa, ou violentado o filho ou a filha, e tinha sido pego pelo Cracachau. O monstro era como se fosse uma espécie distorcida de justiceiro.

_Mas que diabos é esse bicho, afinal?!

_Desculpe. Esqueci que vocês não sabem. Deixa eu voltar ainda mais no tempo.

“Mais ou menos por aquela época, 25 ou 30 anos atrás, Jonas Romanik era um comerciante aqui em Barbacena. Tinha uma lojinha de presentes. Também ambicionava ser escritor. Seus cadernos tinham livros terminados, mas que não interessavam editor nenhum. E ele tinha família. Esposa, um menino, uma menina. Não eram perfeitos, como os dos comerciais de margarina, mas não se podia dizer que Romanik era infeliz.

“Ele trabalhava muito para garantir um padrão de vida alto para sua família. Trabalhava tanto, mas tanto, que acabou caindo de cama, um dia. Teve febre altíssima e ficou no morre-não-morre por uns três dias.

“Quando voltou da doença, ele estava meio... Meio esquisito. Era um cara alegre e falador, mas ficou caladão depois da febre. Às vezes, ele comentava que tinha tido um sonho estranho naqueles três dias, mas sempre desconversava se alguém pedisse detalhes.

“Antes de ficar doente, ele sempre contava histórias para seus filhos dormirem. Sabem como é, Branca de Neve, Três Porquinhos, esses contos de fada convencionais. Depois da doença, Jonas parou com esse hábito, mesmo que as crianças não parassem de cobrar. Uma noite, depois de muita insistência, ele cedeu.

“Estava esquisito, como sempre. Disse aos garotos que, daquela vez, não ia contar um conto de fadas. Ia contar uma história que ele mesmo inventara, que vira em um sonho. As crianças ficaram felizes, já que o pai nunca contava suas histórias. Dizia que eram para adultos. Perguntaram, então, o que ele contaria. Ele respondeu que ia contar uma história do Terrível Cracachau.

“Quando terminou, as crianças não quiseram dormir. Se enrolaram nas cobertas e ficaram espiando os cantos sombrios do quarto, morrendo de medo. A esposa reclamou, mas Jonas apenas deu de ombros.

“Apesar do medo, as crianças pediram mais na próxima noite. E na próxima. Jonas passou a contar histórias do Cracachau todos os dias. Elas vinham com uma facilidade quase assustadora. Depois de já ter várias acumuladas, passou a registrá-las em seus cadernos.

“Um dia, ele foi a Belo Horizonte. Um amigo seu ia apresentá-lo a um editor. Assim, Romanik foi com seus dois melhores livros datilografados, e com os famosos cadernos. Os romances realistas de Jonas não interessaram o editor, que não via público para eles, nem nada de notável que justificasse o risco do investimento.

“Claro que o homem não disse isso de maneira crua. Mas, assim que o sentido de seus eufemismos se tornou evidente para os amigos, quando eles já se preparavam para ir embora, derrotados...

“É difícil dizer o que houve... Uma espécie de intuição fulminante, como aquelas que surgem em momentos extremos? A intervenção de uma força maior?

“O que aconteceu é que o editor ia dizendo: ‘Assim, se você não tem mais nada a apresentar...’ e Jonas respondeu que tinha, sim. E mostrou as anotações do Terrível Cracachau.

“Aquilo surpreendeu o homem. Ele folheou os manuscritos e se deparou com uma literatura infantil como nunca tinha visto antes. Um pouco sombria, um pouco violenta, um pouco perturbadora, mas sem perder o espírito infantil. Ia causar rebuliço.

“Não tinha sido como Jonas esperava ou queria. Mas foi um começo.

“Os livros do Cracachau vendiam, e como! As crianças reagiam como os filhos de Romanik: se assustavam, mas sempre queriam mais. Não demorou e os adultos também foram arrebatados pela “febre do Cracachau”. Pouco depois, o personagem terminou por virar lenda urbana.

“O dinheiro começou a entrar aos borbotões, e Jonas Romanik virou celebridade. Deixou a lojinha nas mãos de seu melhor empregado e passou a se dedicar só à escrita. O editor sempre pedia mais Cracachau e o escritor não o decepcionava.

“O problema é que chegou uma hora em que algo começou a perturbá-lo. Jonas começou a ter pesadelos horríveis com sua criação, com freqüência cada vez maior. Apavorado, ele dizia ver, de verdade, os olhinhos vermelhos e furiosos do Cracachau espreitando-o de debaixo da cama ou do canto do armário.

“Isso começou a afetá-lo ainda mais no dia-a-dia. Chegou a níveis tão alarmantes que a esposa e o médico imploraram que ele parasse de escrever aquelas histórias.

“Infelizmente, não era tão fácil.

“O Cracachau havia dado a Jonas todo o dinheiro e fama que ele sempre quis. E o editor não parava de incentivá-lo a continuar.”

_Espera aí um bocadinho _o jovem de boné interrompeu, sem cerimônias. _Você falou de olhinhos vermelhos e tal, mas não disse até agora que raios é esse Cracachau!

_Ah, bem, Romanik nunca foi muito claro a esse respeito, e as pessoas também não chegaram num consenso. A única coisa que todas as histórias tinham em comum é que o Cracachau sempre aparece, quando invocado, para punir a tortura ou a injustiça. Quanto à aparência dele, uns diziam que era um monstro peludo enorme, outras, que era peludo, mas do tamanho de um anão. Havia mesmo os que davam forma humana ao Cracachau. Isso podia ser um sintoma de que era tudo invenção, ou...

Parou, e seu embaraço ficou visível demais para ser ignorado.

_Ou o que, véi?!

_É meio melodramático dizer isso, mas... Ou podia ser uma prova de que o medo das pessoas é que moldava o monstro.

_Ah, qualé, que história pra boi dormir!

_Dormir foi uma coisa que Jonas começou a fazer pouco _continuou Agenor. _E a pressão dos pesadelos, da insônia forçada e das exigências do editor, cada vez maiores, iam minando cada vez mais o autocontrole do homem. Ele passou a se irritar muito fácil, e descontar isso nas crianças e na mulher. Principalmente nessa última, que falava sem meias palavras e se envolvia com ele em discussões medonhas.

“Uma noite, eles passaram dos limites.

“Os vizinhos ouviam os gritos claramente. Apesar das rebentinas, Jonas ainda era um cara comedido, que não prolongava aquelas cenas além da primeira agressão. Só que, aquela noite, ele estava pior. Acertou um tapa em cheio no rosto da mulher, e chegou a derrubá-la. A filha do casal ficou tão assustada com o que ouvia, que deixou o irmão no quarto e foi espiar, do alto da escada. O que ela viu foi o pai, de pé e muito pálido, como sempre, e a mãe, caída, com um olho roxo e uma expressão de fúria.

“A mulher ficou um tempo no chão. Quando se levantou, gritou ainda mais alto. Disse que aquele foi o fim, a última gota. Ela não reconhecia mais o homem com quem se casara e ia embora com as crianças. Ele que vivesse o resto da vida só com a companhia de seu monstro de estimação e de seu precioso editor.

“A raiva de Jonas já tinha passado, e ele se ajoelhou aos pés dela, pedindo perdão. Prometeu que pararia tudo, deixaria as histórias, e que poderiam recomeçar.

“Ela zombou dele, disse que não acreditava mais naquela promessa. Que ele não era homem de cumpri-la. Ele abraçou-se aos pés dela e renovou a promessa com mais ardor, mas ela chutou-o e cuspiu no rosto dele. Livrou-se sem piedade dos braços que ainda a retinham e começou a subir as escadas.

“Jonas tinha ficado no chão, chorando. A cena da mulher subindo os degraus, para pegar as crianças e ir embora para sempre, foi mais do que ele pôde suportar. Alguma coisa, que ele já havia sentido se revolver em sua mente durante a doença, finalmente saiu com força total.

“Chorando e balançando para frente e para trás, Jonas sussurrou, como um garotinho, as palavras que invocavam o Cracachau: ‘Vem, Cracachau. Vem e pega ela!’

“A esposa chegou a virar para trás para rir: a cena era mesmo grotesca. Mas o sorriso nem chegou a sair de todo. Quase imediatamente, as luzes do bairro todo se apagaram, menos a da casa dos Romanik, que ficou muito fraca. Àquela meia-luz, a menina no alto da escada viu... Bem, não se sabe exatamente o que ela viu.

“A vizinha ligou para a polícia logo depois. Ficou consternada com os gritos cortantes de mulher e os urros de animal selvagem.

“A cena que aguardava os policiais foi terrível. Jonas chorava em posição fetal, num canto da sala. Sua filha estava ainda agarrada à balaustrada, em completo estado de choque. E sua esposa... O pouco que restava dela estava mastigado e rasgado, ela mal era reconhecível como ser humano.

“Romanik foi preso no manicômio judicial, aquele mesmo que fica do lado da Faculdade de Medicina. Ele só dizia, o tempo todo, que aquilo fora obra do Cracachau. As investigações não ajudaram mais que isso. Depois de muito tempo, tiveram que chagar à conclusão de que Jonas não tinha capacidade física para fazer aquilo, ainda que uma loucura homicida tivesse se apoderado dele. E os dentes que mastigaram a mulher não podiam ser humanos...

“Ele nunca mais foi capaz de escrever, e perdeu a guarda dos filhos. A menina jamais se recuperou totalmente do choque, passou anos na FHEMIG antes que voltasse a ter momentos de lucidez. O menino, aparentemente, se recuperou rápido, mas vocês podem vê-lo pela Rua XV durante o dia... Completamente neurótico. Anda o tempo todo espiando sobre o ombro, e é capaz de espancar alguém, se a pessoa lhe der um susto.

“Para se esquecer, Jonas foi se afundando cada vez mais na bebida, até perder quase tudo. Com isso, aos poucos, o Cracachau foi caindo no esquecimento e empoeirando nas prateleiras. E foi isso que aconteceu.”

_E como é que você sabe de tudo isso? _um rapaz perguntou, zombeteiro.

_Cidade pequena. Meu pai conhecia o Jonas, e era amigo de uns vizinhos dele. Também fiquei sabendo do pouco que a menina contou, durante o tratamento. O próprio Jonas solta uma ou outra informação, de vez em quando. Com isso, consegui reconstituir boa parte da história. E ela é real em todas as suas partes. Inclusive o depoimento do Romanik.

_Ah, você tá zoando! É claro que não pensa que foi esse tal de... pff... “Terrível Cracachau”, né?

_Vocês repararam que Jonas tem um pedaço da orelha faltando, certo? _Esperou eles assentirem. _Um bêbado cortou-a em uma briga, há alguns anos. E eu estava lá para ver o Jonas revidar.

Apesar do tom sério dele, os três começaram a rir.

_Aposto que você conta essa história pra todo mundo que passa aqui! Eu queria ver esse tal de “Cracachau” vir me pegar, se eu bater nesse velhote bebum! _o rapaz de boné quase chorava de rir, agora.

O balconista se levantou, e seu gesto tinha uma gravidade que teria impressionado pessoas mais sóbrias.

_Não pedi para que acreditassem em mim, em momento nenhum. Só pedi, e repito o pedido, que deixem Jonas em paz. Podem considerá-lo um louco, se quiserem, mas considerem-no um louco perigoso. Não quero outra cena como a daquela briga, no meu bar.

Dizendo isso, ele voltou ao balcão. Os rapazes esvaziaram uma última garrafa de cerveja, pediram algumas para viagem, pagaram a conta e saíram. Deu para ouvir os pneus deles cantando. Agenor lançou um olhar feio para a rua, mas nitidamente aliviado.



Já passava de uma da manhã. Agenor colocou uma mão amiga, mas inexorável sobre o ombro de Jonas e o encaminhou em direção à porta.

_Vamos, amigo, tenho que fechar.

_Mai’eu quero mai’uma, Nonô...

_Hoje, não, meu velho, hoje não. Vamos, vamos, tenho que ir dormir. E você também. Já passou da conta.

_Só mai’uma...

_Boa noite, Jonas.

Ele empurrou o bêbado pela porta, com firmeza, e fechou-a de uma vez. Romanik deu dois passos e se estatelou na calçada. Começou a roncar pouco depois.

Assim que as luzes da casa sobre o bar se apagaram, um carro cantando pneus apareceu de uma esquina.

_Até que enfim! _um dos rapazes riu. _Vamos tirar a prova da história, pessoal?

_Vamos!

Enquanto carregavam Jonas para dentro do carro, eles ainda fizeram um pouco de algazarra. Sempre oscilando e cantando pneus, chegaram à saída da cidade. Dirigindo em direção à Cabana da Mantiqueira, escolheram um lugar suficientemente deserto, e com o mato alto para estacionar. Arrancaram Jonas do carro e começaram a tentar acordá-lo com pontapés e palavras de baixo calão.

_Acordou, #@$%? Cadê essa &*%$ de Cracachau, hein? Não vai mandar esse %*#$ pegar a gente, não? Anda! Anda, que eu quero ver! Cê não é homem, não?! Chama a &¨*% do Cracachau! Chama!

Os pontapés continuaram, enquanto o bêbado os olhava, atordoado. Um dos rapazes, talvez o menos chapado, parou ao ver o homem cuspir sangue.

_Ei, véi, a gente vai matar o cara!

_Matar nada! Anda, *&%$, chama o &¨#@ do Cracachau, chama!

Deram uma pequena trégua, em que Jonas cuspiu um dente e começou seu patético balanço para frente e para trás.

_Vem, Cracachau _gemeu. _Vem e pega eles!

Os três ficaram quietos, por um instante. Nem eles sabiam exatamente o que estavam esperando. Mas não aconteceu nada.

_Rá! Onde é que tá a %&*&$< do Cracachau agora, hein, seu pudim de cachaça?! Onde é que tá?

O rapaz de boné acertou um pontapé mais forte no queixo de Jonas e apontou o carro.

_Vai lá, véi, pega o trezoitão ali no carro. Vamos ver se isso chama o Cracachau.

Seus companheiros arregalaram os olhos.

_Cê tá doido, véi?! E se pegam a gente?

_Andem logo, suas bichinhas, vão começar com viadagem agora?!

Mesmo insatisfeito, um deles foi buscar o revólver. No momento que voltava, sentiu sua euforia alcoólica se esvair completamente. De repente, ficara muito frio.

Os postes ao redor, além das luzes da Cabana e dos ônibus lá parados se apagaram. Os três foram se aproximando até se encostarem, enquanto o frio e a escuridão se adensavam em torno. Toda a hilariedade e auto-confiança haviam se tornado tensão. O revólver foi brandido, e disparado quando duas luzinhas vermelhas se acenderam na escuridão.

Depois disso, vieram os gritos, os ruídos de dilaceração e os urros inumanos.

Por fim, fez-se silêncio e as luzes voltaram.



Agenor mordeu os lábios ao notar que Jonas se ausentava por mais uma noite. Ligou o rádio.

“Última hora: os restos humanos encontrados póximos à Cabana da Mantiqueira foram identificados. Eles realmente pertenciam a um jovem, dono do carro encontrado no local, e a seus dois amigos. Eles vinham de Belo Horizonte, com destino ao Rio de Janeiro. Ainda não se sabe como ou por que foram mortos. A polícia continua trabalhando para apurar os detalhes...”

O senhor apertou ainda mais os lábios.

Na noite seguinte, Jonas entrou no bar, alienado como sempre. Tinha escoriações no rosto, um dente a menos e usava um boné que o balconista jurava já ter visto antes.

_Jovens! _resmungou, enchendo um copo de vodca e virando de uma vez só. _Criaturas teimosas! Nunca nos ouvem, nunca!

LinkWithin

Blog Widget by LinkWithin