Comunicado Importante - 3 contos do blog serão publicados

É com muito orgulho que venho anunciar, que eu Debby Lennon e Sandra Franzoso iremos participar da antologia Jogos Criminais. A Antologia será lançada no dia 15/01/2011, Na Biblioteca Viriato Correa, situada a Rua Sena Madureira, 298 - Vila Mariana. Meus contos Anjo Perdido e Joana e Maria, já foram postados aqui no blog e agora está aperfeitoado e com mudanças no final,o mesmo acontece com o conto O Noivado da Sandra. Maiores informações em breve.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

A Santa Imolação

- Me safar, Maninho? Me explica como é isso? Como um pai que segurou o filho nos braços...

Emanuel fecha os olhos, apertando com força as pálpebras, ao mesmo tempo em que tenta equilibrar o inspirar e expirar. Porém, o tremor nos maxilares não se aquieta. Esfrega as costas da mão sobre os olhos, abortando as lágrimas por nascerem.

- Ele tinha oito anos, Maninho. O moleque era alegre, não maltratava ninguém. Estudava muito, só tinha notas boas... ele iria sair daqui um dia, Maninho. Seria “gente de bem”. A primeira pessoa em minha família que seria.

Emanuel luta contra suas emoções novamente, desta vez socorrendo-se em uma pausa prolongada nas palavras e o acender de um cigarro. Dá umas boas tragadas até erguer os olhos de encontro aos de Maninho. Sente-se timidamente satisfeito, ao ver o horror nos olhos de seu interlocutor. E sente-se homem por enfim poder olhá-lo nos olhos, sem temer, sem ser submisso, refém das vontades do outro.

- Me explica como é isso, Maninho? Eu vi o sangue encharcar o peito da camisa dele, eu contei cada gemido e suspiro. Eu o ouvi implorar, Maninho: “pai, pai, me ajuda. Tá doendo muito. Eu não quero morrer... Me ajuda, pai.” E eu disse que tudo iria ficar bem, que eu não deixaria que ele morresse – aperta o cigarro entre os lábios e puxa uma boa porção de fumaça para dentro de sua boca - Eu menti pra ele. Minhas últimas palavras para o meu filho foram uma mentira, Maninho!

Emanuel não tinha mais forças para segurar a emoção. Baixa a cabeça e o olhar e deixa que o pranto desfigure seu semblante. A sua frente, assustado, sem compreensão da dimensão do que estava por ocorrer, Maninho o fita. Sente ódio de Emanuel. Ódio desse senhor de quarenta e tantos anos, baixo, magro, fraco... Como ele pudera aprisioná-lo? Como ele pudera fazer Maninho refém, deixá-lo a sua mercê? Emanuel era apenas um homem comum. Um homem como tantos outros moradores daquela favela miserável. Mais um dos que viravam o rosto ou baixavam os olhos para não “verem”, na esperança de não “serem vistos”. E agora Maninho estava ali, preso aos grilhões na parede crua de alvenaria, olhando para Emanuel – Um merda – mas que o fizera prisioneiro.

- Caralho Emanuel! E você acha que me matar vai resolver isso? Você vai é foder com tudo de uma vez. Você tem família, você tem mais dois filhos. O que você acha que vai acontecer com eles? Assim que meu pessoal souber que foi você... cara, você é um homem morto!

E Emanuel gargalha, levantando a cabeça e olhando para Maninho. Limpa o rosto com o punhos da camisa. Levanta-se da cadeira e acocora-se frente a seu prisioneiro. A centímetros da face de Maninho, sente seu hálito podre, ve o medo em seus olhos. E sente-se poderoso, como nunca. Aperta o pescoço de Maninho. Não para matá-lo, mas apenas para vê-lo sofrer com a escassez de ar

– Desde que nasci, Maninho, sou um homem morto. Rastejando pelos becos, como uma pálida sombra. Fugindo da violência e insultos de meu pai, fugindo dos moleques enturmados aqui na favela e na escola, rezando para ser deixado em paz por todos. Para poder viver minha vida. Só isso... Mas que vida tem um homem morto? - solta a garganta de Maninho, empurrando sua cabeça de encontro aos tijolos da parede.

Regozija-se ao ver dor e medo nos olhos de seu prisioneiro. Levanta-se revitalizado, sem tirar os olhos de Maninho. Subjugar aquele homem lhe dava força, lhe dava vida. A vida que nunca tivera. Vira-se e caminha até uma pequena janela basculante, esculpida junto a porta de entrada daquela cozinha em construção. Lança o olhar pela frestas entre as abas. Parecia procurar por alguém, por alguma notícia ou manifestação do mundo lá de fora. Porém, na escuridão da madrugada ficava difícil ver com clareza. O local era pouco iluminado. Quase como na favela de que vinha. Na favela de Maninho. Sombras e mais nada. Olha para seu relógio e pensa – Alfredo está atrasado – e isso podia ser preocupante. Volta-se para a cadeira e senta, apontando a arma para Maninho.

- O mais cruel Maninho, é que precisei de você e daquela corja de vagabundos que cuidam do tráfico na favela... de você e daqueles policiais canalhas que deram a batida. Precisei que meu filho mais novo morresse para poder descobrir o quanto eu mesmo já estava morto. E o quanto não valia nada aquela vida. Você vê, Maninho? Entende? Eu devo a vocês essa descoberta. E eu devo a vocês ter renascido.

- Você acha que me matar vai te fazer vivo? - e Maninho pôs-se a gargalhar. Quase histérico, tentando entender o que passava pela cabeça de Emanuel. Percebeu que seu algoz mantinha os olhos fixos nele, sem qualquer expressão no rosto. Maninho não podia desequilibrá-lo. Não podia fazer com que puxasse logo aquela porcaria de gatilho e acabasse com sua espera. Não tinha medo de morrer. Entretanto, se horrorizava por ser subjugado. Conhecia a crueldade. Praticava a crueldade com maestria. E um tiro, um único disparo em seu peito, lhe parecia uma morte boa e digna - Emanuel, pensa bem... eu não dei nenhum tiro. Meus camaradas se defenderam, revidaram os disparos dos homens. Dos policiais que mataram seu filho. Foram eles, Emanuel. Você sabe que foram – Emanuel continuava a olhá-lo, impassível – Faz assim: me solta. Eu deixo pra lá. Te mato, mas com honra, com dignidade. Um tiro na cabeça e acabou. E libero uma grana legal para tua mulher, para teus filhos. Eles vão poder sair daqui. O que me diz? É um bom trato. E não matei teu filho, porra! Aceita então.

- Todos nós o matamos, Maninho. Cada morador dessa maldita favela, cada policial e traficante. Cada pessoa nessa cidade que não fez nada, nada mesmo para impedir que isso acontecesse. E acontecesse de novo e de novo e de novo – balançou a cabeça levemente, numa negativa – Quantas vezes eu vi isso na TV? Quantas crianças mortas, velhos mortos, mulheres mortas. Por balas que eram para você, Maninho. Para os policiais... e eu não abri minha boca, se não para uns resmungos de piedade. Não movi um músculo... Até que foi o meu filho. E eu tive que passar por essa dor para saber. Seis meses em agonia, sofrendo por não ter feito nada, para agora saber que preciso fazer. Para não acontecer de novo.

- E me matar vai acabar com as balas perdidas, seu velho de merda?

- Eu não vou te matar, Maninho. Você é lixo, escória. Não representa nada pra ninguém. Nem para os seus. No outro dia, teria um novo chefe do tráfico. No outro dia, tua mulher botava um outro homem na cama. Você não vale nada e não tem serventia para o meu plano.

- E pra que você me pegou, seu porra?

- Para assistir a dor nos seus olhos, como eu assistia a TV antes de meu filho... - e as batidas na porta cortam suas palavras. Aguça os ouvidos, tentando buscar mais sons, mais pistas.

- Emanuel, abre. Sou eu, Alfredo.

- Até que enfim – disse Emanuel, levantando-se rapidamente de sua cadeira e correndo em direção a porta. Abriu-a.

Alfredo era um senhor negro baixinho, pouco mais de 1,60 de altura, barrigudo, camisas puídas sempre para fora das calças bastante manchadas pelas tinta dom ofício de pintor. Alguém que há muito tempo, não se importava. Viúvo, dois filhos presos por tráfico de drogas, camaradas de Maninho. Ao lado dele, um homem branco, forte, 1,80 e tanto de altura, fardamento da policia, cabeça encoberta por um capuz negro. A cena era até que cômica. Ou surreal. Como um pequenino daqueles conseguira a proeza de capturar aquele grandalhão?

- E então? - indagou-lhe Emanuel, dando passagem para que Alfredo e seu prisioneiro entrasse.

- Me ajude a prendê-lo na parede – pediu Alfredo. Os dois sentaram o homem ao lado de Maninho, que assistia com surpresa a tudo aquilo. Abriram as algemas presas por trás das costas e prenderam-as nas presilhas fixas na parede. Alfredo puxou o capuz negro e todos viram o rosto desesperançado do Tenente Rodrigues, amordaçado. Alfredo e Emanuel afastaram-se dos prisioneiros, falando baixo para não serem ouvidos. Os olhos do policial examinaram atentamente o local. Mas era um olhar sem vida, de alguém que já havia desistido. Ele parecia saber sobre seu trágico destino.

- Alfredo! - gritou Maninho – Você sabe que teus filhos vão morrer, se você se envolver com esse louco. Eu tô cuidando deles, protegendo eles lá dentro da cadeia. Mas se eu morrer, eles morrem também. E não vai ser de uma morte bonita de se ver, velho.

- Meus filhos já morreram faz tempo. Quando você os adotou. Quando a sua Droga tirou eles de mim. Não tenho filhos por quem eu possa fazer algo. Mas posso fazer pelos filhos de outros, que ainda nem nasceram.

- Você e esse outro maluco acham que são super heróis? Acham que matando um traficante e um policial tudo se resolve? Que isso paga tudo? E que o mundo vai ser salvo?

Emanuel sorriu – Você não vai morrer, Maninho. E nem o Tenente Rodrigues. Já te disse isso – olhou para Alfredo – Você trouxe as fotos? - Alfredo fez um sim com a cabeça e entregou o pequeno pacote pardo à Emanuel, que abriu-o e folheou os dois álbum – Solta a mão esquerda de cada um deles – ordenou a Alfredo, que o atendeu prontamente, sob a proteção de seu revolver.

Tanto Maninho quanto o Tenente Rodrigues flexionavam as mãos para livrarem-se da dormência. Emanuel apenas observava-os, buscando capturar o estado de espírito daqueles homens. Buscando compreender qual seria o melhor momento para seu golpe final – Agora são duas e cinquenta e cinco da manhã. A nossa Favela esta praticamente dormindo. Fora os teus Camaradas, sempre atentos, sempre prontos para vender mais um pouco de morte. Mas nós demos um jeito neles também - sorri novamente - Não, Maninho. Não morreram e nem vão morrer. Não vai haver mortes de canalhas nesta noite. Apenas Sacrifícios. Sagrados.e puros. Para levar nossa mensagem aos homens e a Deus.

Um calafrio percorreu a espinha de Maninho – Do que você tá falando, seu maluco? Que porra de sacrifício é esse? - olhou para o Tenente e viu lágrimas brotarem nos seu olhos – Você sabe? Você tá entendendo esse doido?

- Ele sabe sim. Ou supõe. Foi pego dentro de sua própria casa. Aguardou por lá, enquanto eram feitos os preparativos. Enfim, viu tudo. Entendeu a trama – Emanuel andou em direção aos dois homens e jogou-lhes sobre o colo um álbum de fotos para cada um. O Tenente Rodrigues apenas chorava. Mesmo com a mão solta, não se preocupava em tirar sua mordaça e nem segurar o álbum com as fotos. Já entendera tudo, já percebera o desfecho da história. E não tinha forças sequer para protestar. Ou gritar por socorro – As três horas da manhã nossos dispositivos vão disparar. O fogo vai se alastrar rapidamente. Não sobrará muito para ser visto depois. De uma boa olhada nas fotos, Maninho. São as últimas imagens de sua família viva. Porque em cinco minutos, ela vai queimar.

Os olhos de Maninho arregalaram-se em desespero - Minha família – e foi folheando as fotos de seu álbum. O pequeno Lucas, sua esposa, sua mãe e até o seu irmão mais novo, Jonas. Todos ali, amordaçados e amarrados juntos a galões de gasolina – Meu Deus, Emanuel! Não faz isso caralho. Me mata, mas não faz isso porra! Não mata eles não... eles não te fizeram nada. Fui eu, fui eu .. Eu, meus camaradas, os policiais... Minha família não...

Emanuel e Alfredo dão as costas aos homens e se encaminham para a porta. Antes de sair, porém, Emanuel volta-se para Maninho e Rodrigues – Neste mesmo horário, a favela pegará fogo. O incêndio será feroz, voraz em demasia. Mas só as crianças, velhos e mulheres estarão nos barracos. Nossos companheiros já removeram os homens adultos – sorri, ao ver os olhos de Maninho cheios de lágrimas, em desespero e até incredulidade - Isso, Maninho. Somos em muitos. Quarenta pessoas que simplesmente cansaram-se e... entenderam que só a imolação pode reparar o mundo. Só quando cada Homem, culpado por omissão ou crueldade, perceber o quanto dói a vida. E entender que é preciso acabar com a bestialidade – Emanuel confere seu relógio. Em um minuto, começaria o Inferno na Terra. Em um minuto, estaria ele próprio condenado a danação eterna. Mas não havia outra forma. Não via como tocar o coração daqueles homens se não fosse assim, com a própria crueldade com que traçaram suas vidas – Minha família também está lá. Meus outros dois filhos, minha esposa – nem se preocupou em deter uma lágrima que deslizou por sua face – As TV s e Jornais vão receber a matéria, assim que estiver consumado o sacrifício. Saberão também onde encontrar vocês dois. Saberão também o porque de tanta dor em uma só noite. E também saberão em que Igreja me encontrar, juntos aos meus novos companheiros, prontos para um tiroteio final. Um último confronto entre “mal” e o “mal”.

Os dois homens saem e fecham a porta da casa em construção, deixando para trás o pranto dos vencidos Maninho e Rodrigues. Emanuel contempla o horizonte avermelhado. Há poucos quilômetros dali, as chamas lambem as madeiras dos barracos. Emanuel faz o sinal da cruz. Porém, não pediria perdão. Não havia perdão para o que acabará de fazer.



11 comentários:

Pensador Louco disse...

Parabéns, meu amigo. Um conto maravilhosamente bem escrito e conduzido. A cada dia descubro mais e mais coisas incríveis no blog de vocês. Abração.

Debora Gimenes disse...

Oi José, realmente um texto bem conduzido. Parabéns

Sandra Franzoso disse...

José,

Que coragem! Fiquei indignada e revoltada com o que aconteceria.
Uma boa leitura nos proporciona esses sentimentos mesmo, tanto coisas boas quanto ruins. Parabéns! Excelente!
Esse mal existe de fato, porém, fico feliz que as crianças e os velhos inocentes da favela não morrerão de verdade, não pagarão com a vida pelos erros dos seus familiares criminosos, é apenas um conto... ufa rsrs.
Sensacional!

Terezinha Bolico disse...

Demais...
Por alguma razão me lembrou o livro Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca. Realidade crua que a gente finge que não existe.
Muito bem conduzido teu conto, não deixa a gente abandonar a leitura sem ler cada palavra.
Parabéns amigo.
abração

Unknown disse...

Excelente, José!
Um trajecto muito bem descrito, num cenário limitado. Consegue viver-se os sentimentos das personagens. Parabéns!

Abraços
Luísa

Mikasmi disse...

Muito bom o seu conto, prende-nos até ao final.

Vidas cheias de violência e infelicidade, sem rumo nem solução à vista.

Abraços
Emilia

LISON disse...

Saudações!
AMIGO SIDNEY
Confesso que, depois dessa narrativa, tão bem construída, não tenho palavras.
Você está se esmerando a cada Conto, siga em frente, o seu potencial é fantástico!
Faço votos que suas imaginações seja coroadas de muitas inspirações!
Meus Parabéns!
LISON.

Renato disse...

Muito bom o texto fiquei preso a leitura, vidas soltas e presas ao mesmo tempo,nota 10.
Abraços forte

PROJETO NOVO IMPULSO disse...

Parabéns meu escritor um belo texto.
Deus te abençoe

Joselito disse...

Nem todos conseguem conviver com situações de nosso cotidiano, entretanto muitos aceitam, outros contestam, e outros de uma maneira ou de outra acabam agindo.

Anônimo disse...

Jose ,parabéns por esse maravihlosa cronica,eu tenho acompanhado de perto seus textos, eles tem me acrecentado muita coisa, como em começar a escrever um texto, maneira de enfatizar e dar vida aos acontecimentos, você narra com uma simplicidade que me sonseguiu me cativar, sabe sei la, não quero que você me tenha como alguém que esta copiando sua metodica de escrever, longe de mim jamais, faria isso, mas sou apenas um observador e admirador do seu estilo, eu não consegui terminar meus estudos, então hj sempre busco absolver aquilo que me acrecenta em crecimento ao caminhar literário embora você se inspira talvez em muitos fatos reais como eu,mas os meus personagens são biblicos,amigo parabens continue porque você so tem a acrecentar em muitas pessoas,,

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